Jornal Estado de Minas

DA ARQUIBANCADA

Essa falta de Cruzeiro vai passar

Conteúdo para Assinantes

Continue lendo o conteúdo para assinantes do Estado de Minas Digital no seu computador e smartphone.

Estado de Minas Digital

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e segurança do Google para fazer a assinatura.

Experimente 15 dias grátis



A abstinência de Cruzeiro tem me levado a criar rituais curiosos. Um deles instituí após ler sobre a falta de Vitamina D nestes dias de isolamento social. Acordo, passo os olhos pelo manto sagrado na poltrona e vou até o fundo do apartamento. Lá está a única fresta de sol matutino. Abro a janela, como se estivesse rodando a catraca do Mineirão. Coloco o corpo para fora e solto a voz! Canto o nosso hino por 6%2b1 vezes, enquanto raios ultravioletas me enchem de vitamina. Tente! Faz bem aos pulmões, à pele, aos anticorpos e à alma cruzeirense.



Sempre me emociono ao cantar essa música magistral, composta em 1965. Seja nas arquibancadas ou como solista ao lado do varal de roupa. Ela é a obra-prima do saudoso maestro Jadir Ambrósio. Quando ainda criança, sua família se mudou para Belo Horizonte na década de 1920. Tornou-se um fervoroso palestrino. Trabalhava na capina de ruas. O pouco tempo de sobra dedicava à paixão pela música. Único estudante negro do conservatório, sofreu com a discriminação.

Do trombone ao violão e à poesia, Jadir tornou-se um dos maiores músicos de uma Belo Horizonte boêmia, azul e estrelada. Após as noites de seresta, entre as idas ao estadinho do Barro Preto, viu o seu Palestra se alcunhar Cruzeiro.
***
Nos idos de 1940, Pedro Vianna dedilhava o piano com a mesma maestria de um Niginho Fantoni conduzindo a bola. Por algumas vezes, dividiu o palco do cabaré Montanhês Dancing, no Centro da cidade, com músicos geniais. Entre eles, Jadir Ambrósio. Ao fim do expediente, à meia-noite, o pianista tirava o calção da mochila, descia até a linha de trem e corria quilômetros até o Bairro Calafate. Era seu treino para o segundo emprego. Pedro tentava a sorte atuando como jogador do Cruzeiro.



Nem fama e tampouco dinheiro. Naquele tempo, futebol não pagava conta. No máximo, um prêmio, como o guarda-roupas doado por um comerciante ao escrete após uma vitória. Brilho e vil metal para Pedro só mesmo com a música. Por décadas, tocou na Casa do Baile, na Pampulha, onde sempre recebia o cumprimento de um frequentador ilustre, cruzeirense e amante da música Juscelino Kubitschek.

A família do pianista de coração celeste crescia. E, quem nascia, recebia uma camisa azul de estrelas bordadas. Batismo era algo sagrado. Assim foi em 1969, quando veio ao mundo o neto João. O menino cresceu e tornou-se companheiro do avô. Fosse para lhe escutar ao piano ou para ouvir os relatos dos tempos de Cruzeiro. Assim, as duas paixões rompiam gerações.

Em 1977, Vô Pedro e João assistiram atarantados ao azarão Cruzeiro aplicar 3 a 0 sobre o favorito Atlético de Lourdes. O garoto comemorava seu primeiro título. Deixou o Mineirão revivendo cada detalhe dos gols do uruguaio “REIvetria”. Apertando a mão do avô, foi cantarolando o nosso hino. Existia sim um grande time na cidade, que morava dentro do coração de João, Pedro e Jadir.


***
Belo Horizonte está em silêncio. João veste sua camisa do Cruzeiro. Busca na memória o dia em que contou a Vô Pedro o desejo de seguir a carreira de músico. Pega o trompete, ajeita o chapéu à cabeça e desce à rua vazia.

A pandemia de COVID-19 e a cidade enclausurada. Desde então, o músico cruzeirense João escolhe uma esquina, saca o instrumento e oferece música às pessoas nos prédios. Cadenciadas pelas melodias, as janelas vão se enchendo como o Mineirão em dia de Cruzeiro. O som baila como drible de um ponta faceiro. O último acorde traz o centésimo de segundo silencioso do pré-gol. Uma explosão de aplausos. João Vianna tem feito da música o seu ritual diário de dizer a todos: “Vai passar”.

Lembrei-me dele hoje, na minha dose de Vitamina D à janela. Senti vontade de olhar para a rua e vê-lo lá embaixo. Camisa azul com as cinco estrelas no peito, sacando o trompete e enchendo a rua com o hino que o maestro, negro e palestrino Jadir Ambrósio nos ensinou a amar. Se acontecesse, eu fecharia os olhos e me confortaria: “Ouça. Essa falta de Cruzeiro vai passar”.