É mais ou menos um consenso na diplomacia a necessidade de compatibilidade entre a política externa e a política interna. Por exemplo, a entrega do Prêmio Camões ao compositor Chico Buarque, ontem, em Lisboa, pelo presidente Luiz Inácio da Silva, está em sincronia perfeita com o momento da política cultural brasileira, de valorização dos nossos artistas e da temática democrática, progressista e popular, que sempre foi uma característica do nosso cancioneiro.
Chico resumiu o mosaico nacional inspirado nos versos de Paratodos, uma de suas músicas: “O meu pai era paulista, meu avô pernambucano, meu bisavô mineiro e meu tataravô baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias o sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco”. Ao registrar que o Prêmio Camões levou quatro anos para lhe ser entregue, registrou com ironia a grande mudança política na vida nacional:
“Quatro anos com uma pandemia no meio davam às vezes a impressão que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil e por toda parte. Hoje, porém nessa tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para assinatura do nosso presidente Lula”.
Entretanto, não se pode dizer que a prioridade diplomática do presidente Lula esteja em sintonia absoluta com a política interna, a não ser que pretenda dar uma guinada à esquerda no seu governo, como já estão afirmando seus adversários, da extrema-direita à centro-esquerda. A forma como Lula se engajou e priorizou a guerra da Ucrânia na nossa política externa está favorecendo a formação de uma frente ampla de oposição, ao contrário do que ocorreu no segundo turno da eleição, quando obteve o apoio das forças de centro.
O erro de conceito é tratar como iguais a Rússia e a Ucrânia. Foi o que revelaram suas declarações em Pequim, Dubai e, ao receber o chanceler russo Serguei Lavrov, em Brasília. O preço político desse equívoco diplomático está sendo muito alto. Por mais que no encontro com o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Souza, Lula tenha retoricamente se reposicionado. Talvez o erro seja até estrategicamente mais grave: tratar a guerra da Ucrânia como prioridade e não, como deveria ser, a questão ambiental. Na diplomacia presidencial, Lula perdeu a dimensão de que a questão da Amazônia é tão importante ou mais até do que a guerra da Ucrânia para a sobrevivência da humanidade.
O ex-presidente Jair Bolsonaro se tornou um “pária internacional” sobretudo por foi não compreender que seu apoio ao garimpo ilegal, ao contrabando de madeira e ao genocídio de yanomâmis catalisou a opinião pública mundial contra o seu governo, visto como uma ameaça pela maioria dos governos do Ocidente, mais até do que sua a aproximação com Putin, cujo regime iliberal lhe servia de espelho. A vitória de Lula reabriu todas as portas do Ocidente para o Brasil, porque foi compreendida como uma afirmação da democracia e o passo inicial para salvar a Amazônia e, com isso, conter drasticamente a velocidade do aquecimento global.
A posição do Brasil
A vocação natural do Brasil na divisão internacional do trabalho é a produção de commodities agrícolas e de minérios, inclusive semicondutores. Nos dois casos, como provedores de insumos básicos, isso nos insere por gravidade no mundo das novas tecnologias. Ao mesmo tempo, podemos recuperar nossa complexidade industrial com a produção de fármacos e eletrônicos, nos inserindo na reestruturação das cadeias globais de valor. Para isso, não podemos nos desconectar do Ocidente, principalmente dos Estados Unidos e da União Europeia. A China será cada vez mais o nosso maior parceiro comercial, mas, ao mesmo tempo, está engolindo o mercado interno e externo das nossas indústrias.
A hegemonia das relações comerciais entre Ocidente e Oriente é disputada pelos Estados Unidos e a China. Isso nos coloca diante das seguintes perguntas: Qual o grau de prioridade das nossas relações com o Mercosul e a União Europeia? Como administrar a complexidade da nossa participação nos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), novo o eixo das relações entre a Ásia, a África e a América do Sul? Não podemos pôr tudo a perder por causa da guerra da Ucrânia. Empunhar a bandeira da paz não deve ser um reposicionamento estratégico do Brasil no mundo. Isso mudaria profundamente a correlação de forças políticas internas, principalmente no Congresso.
Ainda não sabemos se a transição da bipolaridade para a multipolaridade na política internacional se processará de maneira pacífica ou, pelo contrário, violenta, como se apresenta agora na Europa. Essa transição também acirra conflitos de interesses entre as grandes potências e as principais nações emergentes. Desde a Segunda Guerra, os conflitos armados foram regionais ou étnicos, mas a guerra da Ucrânia adquire outra dimensão, está sendo comparada pelos países da Otan à ocupação dos Sudetos (cadeia de montanhas situada entre a Polônia, a antiga Tchecoslováquia e a Alemanha) pelas tropas de Hitler. Ao assinar o Acordo de Munique, a França e o Reino Unido chocaram o ovo da serpente da expansão nazifascista.