Estado de Minas 90 ANOS

Carlos Herculano Lopes e os caminhos da mem�ria

O escritor e jornalista trabalhou no Estado de Minas de 1979 a 1989 e de 1995 a 2015. Lan�ou A dan�a dos cabelos, Sombras de julho e Poltrona 27, entre outros romances


postado em 15/06/2018 06:25 / atualizado em 14/06/2018 19:42

O cantor Cauby Peixoto e o jornalista Carlos Herculano, em outubro de 1999(foto: Acervo pessoal)
O cantor Cauby Peixoto e o jornalista Carlos Herculano, em outubro de 1999 (foto: Acervo pessoal)

Sem me preocupar com a ordem cronol�gica dos fatos e sem fazer qualquer pesquisa, mas seguindo apenas os “caminhos da mem�ria” – assim como Geraldo Freire em seu belo livro hom�nimo –, lembro-me de que cheguei � editoria de Pesquisa do Estado de Minas em 1979, levado por Carlos Felipe. Na pequena sala em que comecei a trabalhar, em meio a milhares de fotografias e recortes de jornais, recebi a tarefa de datilografar os textos que o professor Aires da Mata Machado Filho trazia, na maioria das vezes manuscritos, para serem publicados na coluna sobre l�ngua portuguesa que ele assinava no jornal.

O fil�logo famoso enxergava quase nada. Eu ia busc�-lo na portaria, todas as semanas, para ajud�-lo a subir as estreitas escadas do pr�dio da Rua Goi�s. Bom de prosa, certa vez nos contou que estava num ponto de �nibus da Rua da Bahia, esperando o Floresta-Santo Ant�nio, e pediu ao homem ao lado que lhe avisasse da chegada do coletivo. O nosso grande intelectual ouviu, de pronto: “Mo�o, o senhor n�o repare n�o, mas eu tamb�m sou analfabeto”.

Ainda jovem, dava meus primeiros passos no jornalismo e na literatura. Certa manh�, separava algumas fotos na “Pesquisa”, quando Roberto Drummond, subeditor da Segunda Se��o, e a quem dias antes havia mostrado uns contos de minha autoria, pediu-me que fosse ao Hotel Del Rey, ali na esquina, entrevistar Pedro Nava. No dia seguinte, o escritor faria uma palestra no Pal�cio das Artes. Jamais havia lido um livro do grande memorialista, nem sabia nada de sua vida, mas segui adiante. Nava me acolheu de forma paternal, e, sentindo meu despreparo, tratou de guiar a conversa. Na despedida, autografou para mim um exemplar de Ch�o de ferro.

De volta � reda��o, Roberto Drummond perguntou: “Como foi l�?”. “Foi �timo”, respondi, e redigi a mat�ria como pude. Igualmente solid�rio, Roberto a reescreveu. A partir daquele dia, ficamos amigos. Posteriormente, dividimos mesas em encontros liter�rios – certa vez, tivemos a honra de participar de uma delas ao lado de Fernando Sabino.

Autor do cl�ssico Hilda Furac�o, Roberto estava conosco no dia em que o cantor Luiz Gonzaga foi � sala da “Pesquisa”, onde seria entrevistado por Carlos Felipe, autor de uma p�gina semanal sobre MPB. Terminada a conversa, Gonzag�o falou do desejo de comprar goiabada e queijo para se lembrar dos tempos em que morou em Minas. Felipe n�o poderia ir e me pediu que acompanhasse o Rei do Bai�o at� o Mercado Central. Descemos para l�, acompanhados pelo divulgador Carlos Capurucho.

Foi uma festa. Seguimos a p�. Gonzag�o, muito sol�cito, foi muito cumprimentado durante o trajeto pela Avenida Augusto de Lima, que demorou bem tempo, pois de minuto a minuto algu�m nos parava. O ass�dio (no melhor sentido do termo) continuou l� no “mercad�o”. Pelo que me lembro, comerciante nenhum cobrou pelos produtos escolhidos por ele. Um dos pesares que tenho � n�o termos tirado uma foto naquela tarde.

Ali�s, n�o fiz foto nem com Luiz Gonzaga nem com Cartola, a quem entrevistei no Teatro Francisco Nunes, quando ele veio a BH participar do Projeto Pixinguinha. Pelo menos, tenho o consolo de t�-lo acompanhado at� o Rococ�, um bar/lanchonete na Avenida Afonso Pena, onde o grande sambista tomou dois conhaques. Aproveitei para tamb�m pedir uma dose.

Se n�o documentei meus encontros com Gonzag�o e Cartola, com Cauby Peixoto foi diferente. Guardo a foto com ele. No decorrer da entrevista no Hotel Sol Meli�, registrada por Ti�o Mour�o, perguntei ao cantor, mais preocupado com os cliques do que com a conversa, com quem havia aprendido a fazer tantas poses.

– Foi Carmen Miranda quem me ensinou – respondeu o cantor.

Tamb�m apare�o num retrato ao lado da diva Clara Nunes, convidada para uma das inesquec�veis festas de Natal que Anna Marina organizava na garagem do pr�dio da Rua Goi�s.

Vaidades fotogr�ficas � parte, entre centenas de mat�rias, entrevistas e cr�nicas que fiz para o EM, n�o me esque�o da conversa com o cirurgi�o pl�stico Ivo Pitanguy, que veio a BH lan�ar um livro. Nosso encontro se deu na su�te de um dos �ltimos andares do Othon Palace Hotel. Convers�vamos perto da janela, com bela vista para as montanhas. Certa hora, ele apontou para elas e disse: “Veja como aqueles contornos se assemelham a um belo corpo de mulher”. Desde ent�o, sempre que vejo as serras de Minas e seus relevos me lembro daquela frase.

Anos antes, l� mesmo no Othon, entrevistei o escritor Jos� Mauro de Vasconcelos. Comentei o encantamento que tinha pelos livros dele, e o autor de Meu p� de laranja-lima (injustamente esquecido pela cr�tica) se emocionou e me deu um abra�o. Poucos meses depois, morreu. De outra feita, no lobby do Hotel Ouro Minas, ao perguntar ao professor Antonio Candido, o maior cr�tico liter�rio que este pa�s j� teve, quais livros ele andava lendo, o mestre respondeu: “N�o leio mais, agora s� releio”.

Seguindo os “caminhos da mem�ria”, lembro-me de que em 21 de junho de 2002 ( � noite, o Brasil jogaria com a Inglaterra pela Copa do Mundo), estava na reda��o do EM, j� na Avenida Get�lio Vargas. Roberto Drummond chegou e disse: “Herculano, vamos ali tomar um caf�?”. Olhei para ele e o percebi diferente, abatido, olhos vermelhos. Perguntei o que era aquilo, e ele revelou que n�o estava se sentindo bem. Com a ajuda do companheiro Carlos Gropen, conseguimos uma consulta com o doutor Luiz Ot�vio Savassi Rocha, que o atendeu e de pronto o levou para o hospital. Roberto Drummond estava infartado. N�o resistiu. Morreu naquela mesma noite, quando o Brasil ganhou de 2 a 1 da Inglaterra e deu um passo decisivo rumo � conquista do pentacampeonato mundial.

Na manh� seguinte, nosso diretor de reda��o, Josemar Gimenez, pediu que, em nome do jornal, eu escrevesse o texto de despedida do amigo. Foi a primeira das mais de mil cr�nicas que nos 13 anos seguintes publicaria no Estado de Minas.


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