Estado de Minas 90ANOS

Movimento estudantil se transformou, mas segue vivo em escolas e universidades

Grupos tiveram passagens marcantes em BH durante o regime militar. Hoje, mudaram apenas as bandeiras


postado em 18/10/2018 06:00 / atualizado em 18/10/2018 15:36

(foto: Arquivo EM - MAIO/1977)
(foto: Arquivo EM - MAIO/1977)
Ele nunca esquecer� a cena dos soldados avan�ando enquanto os estudantes se encurralavam dentro do Diret�rio Acad�mico (D.A.) Alfredo Balena, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Era junho de 1977 e, em plena ditadura militar, Thomaz da Matta Machado e os colegas se reuniam para garantir a realiza��o do 3º Encontro Nacional de Estudantes, uma tentativa frustrada e duramente reprimida pelas for�as policiais. Passados 41 anos, o universit�rio do curso de comunica��o social Gabriel Lopo, de 21 anos, da mesma UFMG, provavelmente, tamb�m n�o se esquecer� das lutas de hoje nas pr�ximas d�cadas. Batalhas por direitos sociais, por educa��o de qualidade e pela transforma��o do pa�s ser�o bandeiras lembradas amanh� pelos jovens militantes de hoje. Livre das bombas e da cavalaria que ficaram em um passado cinzento, o movimento estudantil mudou ao longo dos anos. Deixou para tr�s o inimigo certeiro, conhecido de todos no per�odo ditatorial, para assumir um papel difuso, no qual o advers�rio n�o � mais t�o claro. Os respons�veis pela hist�ria de hoje garantem: o movimento n�o adormeceu ou se perdeu. H� uma rede grande se movimentando o tempo inteiro. Est� espalhada, mas existe, se organiza e, se necess�rio, vai para a rua, ocupa escolas e se imp�e para ser ouvido.

Professor da Faculdade de Educa��o da Universidade Estadual de Minas Gerais (Uemg), Francisco Andr� Silva passou um ano na Funda��o de Ensino de Contagem (Funec), escola municipal da cidade da Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte, tentando entender a atual realidade do movimento estudantil. “Quando decidi fazer a pesquisa, tinha outro foco. Meu intuito era criticar a juventude atual e por que n�o h� mais movimentos estudantis a exemplo do que ocorria nas d�cadas de 1960 e 1970”, conta o autor da disserta��o “A voz do estudante na educa��o p�blica: um estudo sobre participa��o de jovens por meio do gr�mio estudantil”, de 2010. “Quando cheguei a campo, vi que o que ocorre hoje � a ressignifica��o da experi�ncia participativa. Jovens que est�o inseridos nesses movimentos se identificam muito mais com quest�es da pr�pria escola. O fato de a realidade deles os afetar tanto faz com que optem por tomar atitude para melhorar a escola”, afirma.

A pesquisa revela que, na atualidade, aquele modelo de participa��o cl�ssica, com um movimento mais engessado, mais ortodoxo e, nas palavras do professor, talvez at� mais conservador, n�o atende aos anseios e inc�modos dos jovens de agora. “Os inc�modos s�o os do dia a dia, da realidade. A pr�pria escola, onde t�m oportunidade de debater com o professor, discutir, se manifestar, � muito mais significativa.”

Francisco Silva destaca que h� 50 anos o inimigo estava posto e todos sabiam o que devia ser combatido. Hoje, dada a pluralidade, os jovens s�o incomodados com a realidade por in�meras vertentes – o col�gio, o respeito a seu modo de ser, a quest�o da orienta��o sexual, a identidade de quest�es �tnico-raciais... Se antes havia aquela aura do ideal, hoje n�o � mais poss�vel rotular. “Acredito na educa��o mais voltada para a realidade e vinculada ao sujeito. S�o jovens que come�am a se aproximar da ret�rica, sabem argumentar e sair de determinados lugares, se apropriam de uma l�gica social marcando que tamb�m est�o em disputa”, explica o professor.

Passada a ditadura, o movimento estudantil voltou a ter voz no movimento Fora Collor, do in�cio da d�cada de 1990 pelo impeachment do presidente Fernando Collor de Melo. Depois disso, n�o houve mobiliza��o nacional de peso em que o movimento estudantil tenha sido protagonista, na opini�o do professor adjunto da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Thomaz da Matta Machado, militante na d�cada de 1970.

Mas ele � vitorioso em muitos aspectos, como a luta pelas quest�es da universidade. Por meio dela, vieram recursos, dinheiro, aumentaram as vagas no in�cio dos anos 2000. A mobiliza��o dos estudantes teve participa��o efetiva tamb�m na expans�o das federais e no Programa Universidade para Todos (Prouni). “Assim, o movimento se volta para dentro dele mesmo. Mais sindical e menos pol�tico”, resume.

Mesmo com mudan�as, segundo Francisco Silva, � grande ainda por parte das institui��es de ensino o receio pelas associa��es estudantis nos col�gios de ensino m�dio. “Algumas gest�es ainda personalizam a coisa, dando a entender que o gr�mio v� fazer oposi��o � diretora ou � coordenadora. Ainda serve de obst�culo. Em outras escolas mais progressistas, o gr�mio � potencializado. Conseguimos ver isso no movimento de ocupa��o das escolas”, relata, referindo-se a 2016. Em outubro daquele ano, mais de 1 mil escolas, c�mpus universit�rios, institutos federais e outros espa�os foram ocupados em todo o pa�s por estudantes secundaristas em rep�dio � reforma do ensino m�dio e � Proposta de Emenda � Constitui��o (PEC) 241, que limitou os gastos do governo federal por 20 anos.

Para o estudioso, � fundamental entender que a juventude se d� de maneira plural. “O que � problema para o jovem na periferia n�o � para o do Belvedere. Isso faz com que experi�ncias de vida do sujeito incidam na forma como v� e como vai interpelar a realidade. A modernidade tardia mostra que a sociedade est� se tornando cada vez mais complexa. Determinadas entidades n�o s�o suficientes. S� ser jovem n�o basta mais.”

Bastidores da crise de 1977

Pol�ticos e jornalistas foram convidados, em 3 de junho de 1977, pelo ent�o governador de Minas Gerais, Aureliano Chaves, para visitar  obras p�blicas e para um almo�o em seguida. Mas a comida ficou indigesta depois que o ent�o reitor da UFMG, Eduardo Cisalpino, entrou, apressado, querendo falar com urg�ncia com o chefe do Executivo mineiro. Em conversa a portas fechadas por quase meia hora, os dois trataram das estrat�gias para lidar com o 3º Encontro Nacional dos Estudantes, marcado para dois dias depois, na Faculdade de Medicina. O Estado de Minas cobriu os impasses da situa��o. Na ocasi�o, Aureliano garantiu que a pol�cia s� entraria com pedido por escrito da reitoria. Em contrapartida, a PM recebera ordens para cercar a faculdade, impedir a entrada de estudantes e qualquer tipo de manifesta��o ou ato p�blico, com base na Lei de Seguran�a Nacional.

Foram 30 horas de muita tens�o em toda a cidade. Na Igreja da Boa Viagem, 100 estudantes ficaram sitiados. Tamb�m sem conseguir chegar � Medicina, outras centenas se aglomeraram no passeio da Igreja dos Sagrados Cora��es, na Avenida Caranda�. Policiais com c�es e metralhadoras, lan�a-bombas e escudos  isolaram a Avenida Alfredo Balena, exigindo documento de que precisasse chegar ao Pronto-Socorro Jo�o XXIII, �nico que ficou aberto na regi�o.

“Pronto: o advers�rio j� tinha sido acuado e ali no pr�dio estava cansado e faminto. Agora bastava evacuar o espa�o. Foi ap�s essa sequ�ncia de lances que os estudantes esperaram para se retirar do D.A., na Faculdade de Medicina. Depois do uivo das sirenes, da exibi��o dos c�es amestrados e dos sofisticados equipamentos policiais, depois da tomada e do cerco, quando dominados, quando foram acionados todos os dispositivos de seguran�a, os estudantes nada mais podiam fazer: s� lhes restava abaixar a cabe�a e aguardar”, dizia edi��o do EM de 5 de junho.

Reitor e secret�rio de Estado de Educa��o foram ao local convencer os estudantes a se render. Depois de gritos e desabafos, saiu o primeiro grupo, de seis alunos, em meio a um corredor de policiais, contrariando a ordem para deixar o pr�dio com as m�os na cabe�a. “Evitando a cena, eles se abra�aram como se tivessema se esquecido da fome, da vig�lia, do p�nico. Unidos, eles passaram pelo 'corredor polon�s’ e foram parar � porta dos �nibus, onde eram revistados de cima a baixo, onde suas bolsas eram vasculhadas, onde seus bolsos, carteiras, bainhas das cal�as, cabelos eram examinados. Uma opera��o que durou duas horas e em que foram apreendidos um viol�o, tesourinhas e qualquer objeto cortante”, relatava a mat�ria.

O resultado: cerca de 480 estudantes foram detidos no Departamento de Ordem Pol�tica e Social (Dops) e 100 no Parque da Gameleira, para uma megaopera��o de triagem e identifica��o.  

Novas causas

O estudante Gabriel Lopo come�ou a militar quando ainda era secundarista, em Montes Claros, no gr�mio estudantil do Instituto Federal do Norte de Minas. Integrou a Federa��o Nacional dos Estudantes do Ensino T�cnico e, hoje, est� no Diret�rio Acad�mico da Faculdade de Filosofia e Ci�ncias Humanas (Fafich) e foi rec�m-eleito coordenador-geral do Diret�rio Central dos Estudantes (DCE) da UFMG. “A situa��o do pa�s mudou muito desde a d�cada de 1980, com o crescimento monstruoso da educa��o privada no ensino superior e o desmonte do ensino b�sico. Isso tudo deu uma outra cara aos estudantes”, afirma. Ele garante que o movimento estudantil ainda � muito forte e os in�meros gr�mios, DAs e DCEs t�m uma bandeira �nica, que passa pela educa��o de qualidade e a transforma��o do pa�s – para n�o deixar de lado jamais o vi�s pol�tico.

(foto: Leandro Couri/EM )
(foto: Leandro Couri/EM )


Anos de chumbo

O professor adjunto da Faculdade de Medicina da UFMG Thomaz da Matta Machado � categ�rico: h� 40 anos, a luta era pela liberdade, em meio � proibi��o de organiza��o e de envolvimento com sindicatos. Ele estava entre as centenas de estudantes presos naquele 4 de junho de 1977, quando a pol�cia invadiu o C�mpus Sa�de, na Avenida Alfredo Balena, em BH. Soldados deixaram encurralados universit�rios de v�rias partes do pa�s que se reuniam para o 3º Encontro Nacional dos Estudantes. A pol�cia come�ou a prender, j� na estrada, quem estava nos �nibus a caminho de BH. Os estudantes foram convocados a fazer vig�lia. Do �nico telefone dispon�vel, ligavam para os pais pedindo �gua e comida. Muitas fam�lias foram para as ruas. “Foi um quebra-pau na cidade inteira. Todo mundo apanhou”, conta Matta Machado, lideran�a estudantil na �poca. O saldo: quase 500 pris�es.
 
(foto: Leandro Couri/EM )
(foto: Leandro Couri/EM )
 


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