Estado de Minas

A hist�ria de Ivo, um belo-horizontino que viu a cidade crescer

Nascido 73 dias ap�s a funda��o do EM, arquiteto e professor resgata a inf�ncia e a juventude na cidade. Nove d�cadas se entrela�am com a hist�ria de BH


postado em 12/12/2018 06:00 / atualizado em 12/12/2018 12:36

(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)

Voz firme, pensamento r�pido, mem�ria prodigiosa e profundo conhecimento da hist�ria de Minas e, de modo especial, de Belo Horizonte, fazem da conversa com o professor Ivo Porto de Menezes, de 90 anos, um prazer inesquec�vel aliado ao cabedal de informa��es que se adquire a cada frase dele. Nascido na Rua Alagoas na esquina com Santa Rita Dur�o, no Bairro Funcion�rios, e hoje residente em Lourdes, ambos na Regi�o Centro-Sul, o arquiteto graduado em 1954 na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), conta que, ao iniciar o curso superior, a institui��o ainda se chamava Universidade de Minas Gerais. “E me formei em engenheiro arquiteto, viu? Era assim que se chamava na �poca”, recorda-se o ca�ula de 15 irm�os, casado h� 63 anos com Maria Beatriz Veloso de Menezes. Da uni�o, nasceram quatro filhos, vieram oito netos e se fortaleceu a cumplicidade conjugal. “Nunca brigamos. � o melhor homem do mundo”, assegura a mineira de Ouro Preto.

Mais novo do que o Estado de Minas 73 dias – ele nasceu em 19 de maio e o jornal come�ou a circular em 7 de mar�o de 1928 –, Ivo sempre deu muita contribui��o � vida cultural de BH, sendo, sem d�vida, um dos seus personagens mais brilhantes. “Belo Horizonte me fez abrir a vis�o para a arte. E arte � preciso sentir”, afirma o professor, que elege a Serra do Curral como de grande beleza. Mas nem tudo s�o flores nessa narrativa, principalmente quanto aos caminhos trilhados pela metr�pole: “Belo Horizonte se tornou uma cidade que n�o deveria ser”. Sil�ncio.

 X�cara de caf�, biscoitos caseiros e a contempla��o da Rua Esp�rito Santo, onde mora com dona Beatriz, garantem a pausa para o professor retomar o embalo e entremear a hist�ria particular com os registros da terra natal. E viaja no tempo, at� 1928, quando o pai Joaquim Furtado de Menezes (1875-1940), engenheiro formado em Ouro Preto, teve uma ideia para levar a f� cat�lica a �reas mais distantes da cidade. Sobre o chassi de um velho caminh�o, montou uma igreja “neog�tica” e conduzia o padre aonde fosse preciso. “Era a ‘auto capela’. Acho que o celebrante da missa era meu irm�o, padre Jos� Joaquim, que se ordenou naquela �poca”, acredita Ivo, mostrando a foto de nove d�cadas atr�s. Na fam�lia, seis irm�os seguiram o caminho da religi�o (tr�s padres e tr�s freiras). “Tamb�m estudei em semin�rio.”

(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)

Entre Contorno e Cristiano Machado

Na intercess�o de pontos entre a vida privada e urbana, Ivo cita o ano de 1940. “Lembro-me bem, porque foi quando meu pai morreu no Hospital S�o Lucas. Presidente do conselho metropolitano da Sociedade de S�o Vicente de Paulo, Joaquim fora o respons�vel pela idealiza��o e projeto da Cidade Ozanan, na gest�o do prefeito Otac�lio Negr�o de Lima (1897-1960). Dois anos antes, o ent�o arcebispo dom Cabral (dom Ant�nio dos Santos Cabral, 1884-1967) aben�oara a Cidade Ozanan, constru�da para atender os mais pobres. “Na regi�o (Nordeste), n�o havia nada, s� mesmo a fazenda de ‘seu’ Juca, apelido de Jos� C�ndido da Silveira, que d� nome � avenida do Bairro Cidade Nova. Para chegar l�, t�nhamos que pegar o bonde na Rua da Bahia, descer na Renascen�a e depois subir um morro.”

Tamb�m em 1940, aluno do primeiro ano do Col�gio Arnaldo, Ivo assistiu � inaugura��o da primeira pista – “completa”, faz quest�o de ressaltar – da Avenida do Contorno. “Na cidade, os bairros mais importantes eram Floresta, Lagoinha, Santa Efig�nia e Santo Ant�nio e Prado. Fora do per�metro da Contorno, n�o havia quase nada. A Avenida Amazonas nem existia.” Na inaugura��o da via p�blica, ele e os colegas “bateram bandeirinhas” para saudar o presidente Get�lio Vargas (1882-1954). Mais um gole de caf�, uma r�pida olhada na janela do quarto andar e o professor reaviva as lembran�as.

A d�cada de 1950 foi de descobertas e realiza��es para o jovem estudante de arquitetura que conciliava a universidade com o servi�o de desenhista na Prefeitura de Belo Horizonte. Ivo confere uns pap�is e revela que, em 1952, participou de projetos na administra��o de Am�rico Renn� Giannetti, entre eles os levantamentos para desapropria��o da Avenida Cristiano Machado, hoje um dos principais corredores de tr�nsito da cidade. “Ia de barrac�o em barrac�o at� o antigo Matadouro, que ficava no Bairro S�o Paulo. Andava muito a p�, do Centro at� a regi�o”. Na mesma �poca, Ivo fez levantamento no acesso � antiga BR-3, sa�da para o Rio de Janeiro (RJ), mais tarde denominada Avenida Nossa Senhora do Carmo.

Ainda nessa administra��o, trabalhou nos estudos de implanta��o do Sistema de transporte por tr�lebus (�nibus el�tricos), inaugurado pelo prefeito em 1953, com quatro ve�culos de fabrica��o norte-americana. Naquele tempo, BH assistia a um “ensaio” de transporte intermodal (tr�lebus, trem suburbano, bondes e os �nibus movidos a diesel at� ent�o complementares aos bondes). Mas os carros foram tomando as ruas, dentro da pol�tica desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitschek (de 1956 a 1961) e puseram fim a essa perspectiva. Foi nesse �poca, mais exatamente 1955, que Ivo vislumbrou o futuro: “BH vai crescer e desfigurar”.

(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)

De Drummond �s pinturas italianas

De uma pasta, o professor retira outras fotos da cidade e da sua trajet�ria particular. Numa delas, de 1974, assina o livro de posse como diretor do Arquivo P�blico Mineiro, na presen�a do secret�rio estadual de Governo na Gest�o Rondon Pacheco, Ab�lio Machado Filho, e do secret�rio-adjunto Luiz de Almeida. Em outro registro, participa da primeira reuni�o do Instituto Estadual do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico de Minas Gerais (Iepha-MG), do qual integrou o primeiro conselho diretor. 

Na vida profissional, sempre dividindo as semanas entre a capital e Ouro Preto, o belo-horizontino foi chefe de Patrim�nio do Instituto do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional (Iphan), em 1956, em OP. Com vasto curr�culo, Ivo se orgulha da conviv�ncia com Rodrigo Mello Franco de Andrade, primeiro presidente do Iphan, e Carlos Drummond de Andrade, funcion�rio da institui��o.

 Sobre a mesa da sala, est� um livro de capa verde e, ao olh�-lo com carinho, o professor conta uma hist�ria. “Na d�cada de 1960, sa�a com meus filhos de carro e gostava de fotografar as casas dos prim�rdios da capital. E foi assim que nasceu Belo Horizonte – Resid�ncia Arquitetura, escrito naqueles tempos e lan�ado em 1997, na comemora��o do centen�rio da capital. Nas p�ginas, fotos de im�veis antigos, incluindo o que morou. “Quase todas as casas tinham pinturas nas paredes, muitas de autoria do artista italiano Amilcar Agretti.

Autor de 13 livros com foco na arquitetura e no patrim�nio cultural e com mestrado e doutorado, Ivo se aposentou como professor da UFMG, da qual se tornou professor em�rito, e da Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Depois, passou a fazer o que mais gosta: estudar. “Sou um pesquisador de documentos sobre a hist�ria de Minas”, declara-se, certo de que outra obra de sua lavra traduz bem seu trabalho: V�os – portas e janelas, de 1959. Nesse momento, lembra-se do professor Sylvio de Vasconcellos (1916-1979), expoente do modernismo e seu professor. “Faltando um ano para me formar, ele me chamou para ser professor assistente, o que foi muito bom.”

 

O sabor da conversa cresce ainda mais, quando os rep�rteres circulam com o professor por BH. Na porta do seu pr�dio, no Bairro de Lourdes, Ivo surpreende ao contar que, no projeto original da comiss�o construtora de BH, no fim do s�culo 19, os quatro quarteir�es do entorno seriam ocupados pelo Jardim Zool�gico, enquanto a �rea do shopping na Avenida Oleg�rio Maciel estava reservada � zona industrial. “Era um burac�o isso aqui”, aponta.

 O pequeno passeio come�a pela Rua Alagoas – a casa onde nasceu deu lugar um pr�dio. Com olhos atentos, Ivo para na frente de uma resid�ncia na esquina da Rua Sergipe com Gon�alves Dias, na Pra�a da Liberdade. “A grade de ferro � muito bonita, uma casa art-nouveau. Pena que h� um pr�dio enorme do lado, que n�o tem nada a ver com o estilo dela”, observa.

 Diante do Pal�cio Cristo Rei, sede da C�ria Metropolitana, Ivo diz que o projeto foi do arquiteto italiano Raffaello Berti (1920-1972), mas lembra que “no local, havia uma casa linda”. J� onde se encontra a Biblioteca P�blica Minas Gerais, ficava uma unidade da Funda��o Ezequial Dias – na �poca, filial do Instituto Manguinhos do Rio de Janeiro – para produ��o de vacinas e soros, a exemplo do antiof�dico. “Imagina que fic�vamos na rua olhando l� para dentro do pr�dio e vendo as cobras se movimentando no jardim.”

No caminho de volta para casa, o professor conta hist�rias de fam�lia e da cidade e, num engarrafamento nas imedia��es da Pra�a da Liberdade, revela o porqu� de BH ter se tornado “uma cidade que n�o deveria ser”.Pausa e a resposta: “Culpa do crescimento desordenado”. Olhando para ele, d� muito orgulho de conviver, no s�culo 21, com um homem de amplos conhecimentos, bom humor, vitalidade e senso de realidade, com um detalhe fundamental: as d�cadas de vida se entrela�am com a hist�ria de BH.


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