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Estado de Minas

Biografia de Carolina Maria de Jesus resgata a figura da escritora mineira

Livro busca revelar a dimens�o art�stica de sua obra como reflexo da sociedade brasileira e romper com o estigma de autora favelada


29/06/2018 10:10 - atualizado 30/06/2018 17:14

A escritora na favela do Canindé, em São Paulo, antes da publicação de seu primeiro livro, 'Quarto de despejo'.
A escritora na favela do Canind�, em S�o Paulo, antes da publica��o de seu primeiro livro, 'Quarto de despejo'. (foto: Ad�lio Dantas/O Cruzeiro/EM/D.A Press )
Era 1960, 19 de agosto. Paulo Dantas, o editor da Francisco Alves, uma das casas editoriais mais prestigiadas naquele tempo, ao se pronunciar sobre o lan�amento de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, disse que n�o se tratava de mais um livro, mas sim de uma revolu��o.

Com esta lembran�a, Tom Farias, autor de Carolina, uma biografia, publica��o da carioca Mal�, sintetiza sua compreens�o sobre aquela que � um dos casos mais complexos na hist�ria liter�ria contempor�nea, n�o s� brasileira. No centro dessa complexidade est� o racismo e suas dram�ticas consequ�ncias sociais.

Mineira de Sacramento, Sudoeste de Minas, Carolina nasceu em 1914 numa comunidade rural, filha – bastarda – de pais negros, n�o alfabetizados. Mudou-se para S�o Paulo em 1937, teve tr�s filhos de relacionamentos diferentes e, vitimada pela pobreza extrema, acabou se estabelecendo na favela do Canind�, zona norte da capital paulista.

Depois de um longo sofrimento, garantindo a sobreviv�ncia dos filhos e de si mesma com a cata��o de lixo, Carolina aparece para o Brasil e o mundo com o seu Quarto de despejo, livro que apresenta, numa prosa atravessada por centelhas po�ticas e pensantes, o di�rio honesto de uma moradora da favela.

Descoberta pelo jornalista Aud�lio Dantas (1929-2018), rec�m-falecido, a escritora, que vivia e produzia em condi��es altamente adversas, logo chegou em tradu��o aos Estados Unidos, onde Quarto de despejo apareceu como Child of the dark em 1962, tornando-se um best-seller internacional.

Outros livros apareceram na sequ�ncia, afirmando a fertilidade de uma criadora: Casa de alvenaria (1961), Peda�os da fome (1963) e Prov�rbios (1963). Nenhum, entretanto, logrou o mesmo sucesso do primeiro. Carolina, de todo modo, saiu da favela, mudou-se para a zona sul paulistana. Um sil�ncio se seguiu sobre ela. Morreu em 1977.

Em 1982, um novo livro de Carolina, o Di�rio de Bitta, voltou a chamar a aten��o para a “escritora favelada”, despertando interesse pelos seus in�ditos. Depois, mais um longo sil�ncio, quebrado apenas em 1996 com mais dois trabalhos: Meu estranho di�rio e Antologia pessoal. Mais uma d�cada transcorreu at� que dois novos t�tulos do “quarto” de Carolina vieram � tona: Onde estaes felicidade (2014) e Meu sonho � escrever (2018).

Com uma fortuna cr�tica substanciosa, parecia que Carolina Maria de Jesus j� era uma quest�o resolvida. De repente, Tom Farias chega para dizer que n�o. Carolina ainda � uma quest�o em aberto, apesar, inclusive, de outras biografias recentes: Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus (1994), de Jos� Carlos Meihy e Robert Levine, e Muito bem, Carolina!: biografia de Carolina Maria de Jesus (2007), de Eliana Moura de Castro e Mar�lia Novais de Mata Machado.

Jornalista, pesquisador e escritor carioca, Tom Farias, alcunha “de guerra” de Uelinton Farias Alves, notabilizou-se no in�cio dos anos 1990 com a descoberta e publica��o de in�ditos de Cruz e Sousa (1861-1898). Livros como Poemas in�ditos, Formas e coloridos e �ltimos in�ditos, organizados por Farias, s�o contribui��es fundamentais para o redimensionamento do poeta negro.

Nos �ltimos anos, Farias tem se dedicado a escrever biografias de autores negros: Cruz e Sousa: Dante negro do Brasil (2008) e Jos� do Patroc�nio: a imorredoura cor do bronze (2010). Sua biografia de Carolina se distingue, portanto, j� a partir deste dado: trata-se de uma atitude program�tica, interessada numa reescrita da hist�ria, n�o se trata de mais uma biografa de Carolina.

Ao longo desta entrevista exclusiva ao Pensar, Tom Farias, que tem viajado por toda parte para falar da “sua” Carolina, d� a medida precisa do seu enfrentamento da “personagem”, de como esse enfrentamento se d� em rela��o com o tempo presente. Este tempo que se assemelha, com todo o reacionarismo em voga, ao tempo do “boom” de Carolina, os anos 1960. A revolu��o – a fala de Tom projeta – � negra!
 
Fotografia de 1961 mostra a artista nascida numa comunidade rural de Sacramento (MG)
Fotografia de 1961 mostra a artista nascida numa comunidade rural de Sacramento (MG) (foto: Arquivo)

Sua biografia sobre Carolina de Jesus tem um car�ter restaurador de uma hist�ria de vida, algo que parece pressupor um conhecimento ainda prec�rio, da parte da tradi��o cr�tica, sobre a autora. A que atribui essa precariedade e o que espera que mude a partir de agora na interpreta��o da obra de Carolina?
Em tese, Carolina Maria de Jesus ainda � vista como uma catadora de lixo! Esta vis�o ainda perpassa a academia. Nosso objetivo, com a biografia sobre ela, foi desconstruir essa imagem e al�ar Carolina ao patamar dos grandes escritores, pensadores e intelectuais negros brasileiros. Esse � o lugar que lhe cabe. A chamada “tradi��o cr�tica” est� eivada de preconceitos, ainda heran�a dos mesmos pressupostos que a viram como “favelada” e n�o escritora, como “analfabeta”, ou semi, e n�o intelectual. Posto isso, nos interessa dizer com este trabalho que a literatura de Carolina tem uma pot�ncia, e � por este lado que esperamos que ela passe a ser vista e reconhecida. O resgaste da Carolina � providencial e urgente para a compreens�o do fen�meno social brasileiro.

Percebe-se no encadeamento do seu texto uma preocupa��o acentuada com a informatividade, com a exposi��o bastante objetiva de dados sobre a biografada. Essa op��o por um estilo jornal�stico pouco “liter�rio” responde a um interesse espec�fico?
Na verdade, o estilo que sempre adotei nos meus livros � uma mistura do liter�rio com o jornal�stico. Entrei nessa maneira de narrar de uma forma menos conceitual, supostamente acad�mica, de contar uma hist�ria, mas sem fugir ao tom did�tico e informativo. Tem sido bem assim nos meus �ltimos livros, como Cruz e Sousa: Dante negro do Brasil (2008) e Jos� do Patroc�nio: a imorredoura cor do bronze (2010). Os textos, sobretudo os oriundos de trabalhos acad�micos ou produzidos por acad�micos, fecharam-se num rigor exacerbado. Tenho lido textos nos quais muitas vezes as notas de rodap�, al�m de ser parte integrante de quase todas as p�ginas da obra, ocupam p�gina inteira. Ora, isso n�o � poss�vel. � uma obra que se limita pela precis�o. Fujo disso, embora j� tenha cometido esses mesmos erros ao participar de congressos, cujos anais precisam obedecer a padr�es de edi��o em fun��o da pontua��o das publica��es e conceitua��o (por ag�ncias de pesquisa). Em Carolina, busquei ser o mais direto poss�vel. As notas (muitas delas ser�o suprimidas na segunda edi��o, sobretudo nas tradu��es que devem sair este ano) s�o sempre curtas e concernentes ao personagem retratado.

A constru��o de Carolina como autora passou pela media��o jornal�stica, com a “copidescagem” de Quarto de despejo (1960) por Aud�lio Dantas (1929-2018). Como avalia esse processo, hoje objeto de muita pol�mica?
� bom que se diga que a Carolina j� era uma autora antes de Quarto de despejo. Em 1960, quando o seu livro foi lan�ado, ela j� tinha 20 anos, pelo menos, de vida liter�ria, publicando sobretudo em jornais. Quando Aud�lio Dantas a encontrou (n�o a descobriu) na favela do Canind�, em S�o Paulo, Carolina tinha, em meio aos 38 cadernos manuscritos mostrados a ele, romances, contos, poesias, letras de m�sica, prov�rbios, pe�as de teatro. Os di�rios resultantes em Quarto de despejo, ali�s, n�o faziam parte da ideia inicial de publica��o dela. A ideia foi de Aud�lio Dantas, que aqui precisa ter seu m�rito reconhecido e legitimado. Quanto � acusa��o de que ele teria “criado” um livro, suprimindo coisas do ato criativo de Carolina, n�o procede. Carolina mesmo jamais reclamou disso. Aud�lio muito habilmente d� um sentido l�gico �queles escritos produzidos por Carolina, retirando-lhes coisas repetitivas, pr�prias de uma escrita que tinha basicamente o mesmo padr�o do in�cio ao fim: “acordei �s cinco horas da manh� e fui buscar �gua...” Agora, � preciso que se diga que o sucesso do livro se deve � experi�ncia da Carolina em contar as suas hist�rias, na forma encontrada por ela para narrar o seu cotidiano. H� em Quarto de despejo poesia, fabula��o, antropologia, sociologia e den�ncia social, cultural e racial, algo at� hoje pouco explorado no Brasil de forma t�o energ�tica e direta como a escritora mineira soube fazer.

Parte consider�vel da produ��o cr�tica sobre Carolina nas �ltimas tr�s d�cadas � pautada pela psican�lise. Como avalia essa contribui��o?
Penso que esta pergunta atende pela seguinte resposta: Carolina nunca foi levada a s�rio. Desde a inf�ncia e juventude em Sacramento, quando foi presa por duas vezes, at� sua morte, em S�o Paulo, em 1977, ela � entendida como “louca”. Os jornais que a procuraram, sobretudo no final da vida, a viam assim. Carolina, na verdade, era intolerante com o descaso � sua obra, ao deboche � sua pessoa, ao desmerecimento ao seu valor. O seu protesto, sempre de forma veemente, visto como um rompante, era caracterizado como uma manifesta��o de loucura, quando na verdade era uma possess�o pelos seus direitos, o seu lugar de fala. � preciso salientar que esse lugar a que Carolina foi relegada tem a ver com a sua condi��o social, de origem pobre e escravizada, de m�e solteira, sem o dom�nio do padr�o lingu�stico exigido pelos meios supostamente cultos, m�e solteira de tr�s filhos, preta e ex-moradora de favela e catadora de papel. N�o � outra a no��o sobre isso. O mesmo se aplica quando se diz que ela n�o era uma escritora por ter produzido Quarto de despejo. A for�a da Carolina est� exatamente a partir desse livro, que refor�a o restante da sua produ��o liter�ria, tanto os romances e contos quanto as poesias e prov�rbios.

Carolina autora foi primeiro um “furo jornal�stico”, depois um “sucesso editorial”, at� se tornar um valioso “objeto de pesquisa” acad�mica. Em que medida esse processo se articula com sua condi��o de negra, pobre e favelada?
Em todos (risos), mas ao mesmo tempo em nenhum. Se formos pensar por essa l�gica, tiramos todo o m�rito criador e art�stico dela, Carolina. N�o basta apenas ser descoberta, � preciso que o talento supere e se “empodere” tudo isso. Foi esse o caso dela. O rec�m-falecido jornalista Aud�lio Dantas, quando encontrou Carolina, n�o tinha ideia de que encontrava uma escritora. Ela estava pronta, cheia de manuscritos. Em 1942, j� tinha livro de poesia pronto para ser publicado (o mesmo que no final dos anos de 1950 foi rejeitado por uma editora americana). Enquanto n�o encararmos e aceitarmos que Carolina Maria de Jesus � a maior escritora negra brasileira, a mais publicada no Brasil e no exterior (� o nosso maior best-seller), n�o vamos conseguir entender o seu fen�meno editorial. E h� muitos que ainda querem que isso n�o aconte�a. Vejo que essa tal articula��o (sucesso liter�rio e fracasso econ�mico) tem a ver com esse mal-caratismo brasileiro de nos impor padr�es � for�a. Paulo Dantas, seu editor na livraria Francisco Alves, disse no lan�amento de Carolina que ela n�o fazia um lan�amento naquele long�nquo 19 de agosto de 1960, mas sim “uma revolu��o”. Foi o primeiro a acertar sobre Carolina, al�m do pr�prio Aud�lio Dantas, que foi o primeiro verdadeiramente a acreditar nela.

Dois conceitos t�m sido recorrentes no tempo presente: “lugar de fala” e “p�s-verdade”. Como o senhor os percebe em rela��o � vida-obra de Carolina e, em especial, ao seu livro?
S�o conceitos b�sicos, mas que s� agora come�am a ser empregados pela intelectualidade negra, e n�o necessariamente acad�mica. Carolina � o forte s�mbolo desse lugar de fala: ela exercia esse pressuposto como uma pol�tica de valoriza��o de sua personalidade desde os anos de 1940, quando inicia suas di�rias visitas �s reda��es dos jornais. O seu texto, sobretudo no seu livro famoso, Quarto de despejo, demonstra que ela quer falar por si, sem intermedi�rios, sem interpreta��es, sem interfer�ncias. Sofreu bastante com esse processo, foi mal compreendida (da� a pecha de “l�ngua de fogo”). Quanto � p�s-verdade, o termo pode ser empregado, no caso de Carolina, sobretudo nessa revisita � sua vida e � sua obra. As cren�as sobre as quais se tentou alicer�ar o legado da Carolina (da n�o-escritora, da n�o-intelectualidade, da n�o- pensadora, da catadora de lixo etc.) t�m ca�do por terra cada vez que se sobe um patamar dos escritos deixados por ela. Outra coisa � o aprofundamento dos fatos da sua vida, tanto nos registros deixados por ela nas mais de 5 mil p�ginas manuscritas ou nos datiloscritos quanto nos depoimentos daqueles que foram seus contempor�neos.

Finalmente, qual � o lugar da obra de Carolina de Jesus no empoderamento do povo negro brasileiro hoje?
O lugar � o de dar a condi��o de fala e de criar livremente, como uma determina��o de vida, e de supera��o da sua condi��o social e real. Por esses meios, vemos que Carolina � n�o s� uma voz empoderada numa sociedade machista e preconceituosa, como tamb�m � um exemplo de supera��o de obst�culos, de ader�ncia ao poder feminino, potencializando uma voz feminina que hoje tem como principal seguidora a escritora tamb�m mineira Concei��o Evaristo. Carolina Maria de Jesus, com seu exemplo, abre vozes de carolinas e carolinos pelo Brasil e pelo mundo. Seu poder de penetra��o atrav�s da “escreviv�ncia” – conceito central no trabalho de Concei��o Evaristo – de ideias � instrumento poderoso de transforma��o de uma sociedade injusta e ainda bastante desigual, como nos tempos em que Carolina viveu.

*Anelito de Oliveira � p�s-doutor em teoria liter�ria pela Unicamp, doutor em literatura brasileira pela USP e professor na Unimontes, autor, entre outros, de O iludido (fic��o), Tra�os (poesia) e A aurora das dobras (ensaio).
 
 
CAROLINA. UMA BIOGRAFIA
De Tom Farias
Mal�
337 p�ginas
R$ 72


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