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Estado de Minas

Leia trechos dos 'Di�rios de guerra', manuscrito de Guimar�es Rosa

�nica c�pia p�blica dos escritos do autor de 'Grande sert�o: veredas' durante a Segunda Guerra Mundial est� dispon�vel para consulta na UFMG


24/02/2019 07:00 - atualizado 24/02/2019 21:34

Em abril de 1938, Rosa assume o posto de cônsul-adjunto em Hamburgo, na Alemanha
Em abril de 1938, Rosa assume o posto de c�nsul-adjunto em Hamburgo, na Alemanha (foto: O Cruzeiro/Arquivo EM)
“Chove. Chuvinha gostosa, quase brasileira. Saudades da nossa chuva. Saudade do Brasil”, escreveu Guimar�es Rosa, em 25 de junho de 1940. Nessa �poca, sua temporada como c�nsul-adjunto em Hamburgo, Alemanha, somava dois anos e um m�s.


Rosa, �s v�speras de completar 32, ainda n�o era um dos maiores (para muitos, o maior) romancistas brasileiros. Estrearia em livro com Sagarana, em 1946, portanto depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que ele acompanhou em territ�rio alem�o at� o in�cio de 1942, quando o Brasil rompeu rela��es diplom�ticas com os pa�ses do Eixo.

Foi na temporada alem� que Rosa conheceu Aracy, a Ara, a quem dedica Grande sert�o: Veredas. Vindos de casamentos desfeitos e que haviam gerado filhos (duas dele, um dela), permaneceram juntos at� a morte do escritor, em 1967. Aracy � ainda conhecida como o “anjo de Hamburgo”. No per�odo em que foi funcion�ria do consulado brasileiro, ela enganou a diplomacia de Get�lio Vargas para ajudar dezenas de judeus a conseguir vistos para fugir da persegui��o nazista.

Capa do chamado 'Diário de guerra', escrito por Rosa entre 1938 e 1942
Capa do chamado 'Di�rio de guerra', escrito por Rosa entre 1938 e 1942 (foto: Juarez Rodrigues/EM/D.APress)
� o m�dico tornado diplomata que mais tarde explodiria na literatura com uma prosa absolutamente original que vem � tona em um caderno de 200 p�ginas que est� sob a guarda da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Chamado informalmente de “di�rio alem�o” ou "di�rio de guerra", o documento hist�rico, dispon�vel para consulta p�blica no Acervo dos Escritores Mineiros da UFMG, traz hist�rias em suas p�ginas manuscritas (algumas aqui reproduzidas) e tamb�m fora delas.

 

IMPORT�NCIA “O di�rio tem uma import�ncia hist�rica, liter�ria, cultural, pois trata de um escritor da envergadura do Guimar�es Rosa falando da guerra, da persegui��o aos judeus”, afirma o professor Reinaldo Marques, da Faculdade de Letras da UFMG. Sua fala traz alguma frustra��o, vale dizer.

Ao lado dos tamb�m professores Eneida Maria de Souza e Georg Otte, da mesma institui��o, Marques trabalhou nos manuscritos de Rosa para uma edi��o em livro do di�rio. Em 2005, pr�ximo de sua conclus�o, o projeto foi interrompido. Sua publica��o (na �poca, em coedi��o da Nova Fronteira, ent�o detentora da obra do escritor, com a Editora UFMG) foi vetada por Agnes (morta em 2016) e Vilma, filhas do primeiro casamento de Rosa.

“Para elaborar a frustra��o, come�amos, em nossas participa��es em congressos, a falar do di�rio”, diz Marques, que acabou indo al�m das palestras. No ensaio Grafias de coisas, grafias de vidas (2009), publicado no livro Arquivos liter�rios – Teorias, hist�rias, desafios, compila��o de artigos de Marques, ele tra�a uma esp�cie de biografia do di�rio.

Essa hist�ria – e a de como uma c�pia do manuscrito foi parar na UFMG – t�m in�cio em 1973, com uma carta. “De acordo com sua recomenda��o, retivemos conosco quatro c�pias que ter�o o seguinte destino: uma para a poeta Henriqueta Lisboa, uma para o jovem Thomas Gregori Neto, uma para a Biblioteca de Originais da Casa de Ruy Barbosa e uma para a Biblioteca do Copicentro.”

Em carta, presidente da Xerox comunica ter feito cinco cópias do diário
Em carta, presidente da Xerox comunica ter feito cinco c�pias do di�rio
Em 2 de julho de 1973, Henrique S�rgio Gregori, presidente da Xerox do Brasil, enviou uma carta a Raul Floriano, advogado de Aracy Moebius de Carvalho Guimar�es Rosa, a Ara. Na comunica��o datilografada, ele confirmava a devolu��o, em 18 de junho daquele ano, dos cadernos originais de Rosa que lhe haviam sido entregues para reprodu��o.

Gregori – que 11 anos mais tarde assumiria a Jos� Olympio, editora original do escritor mineiro –, era casado com a artista pl�stica Ana Elisa. Ela, por sua vez, era sobrinha de Henriqueta. Junto com os cadernos xerocados de Guimar�es Rosa, a poeta recebeu uma c�pia da carta enviada a Raul Floriano. De pr�prio punho, Gregori escreveu: “Prezada D. Henriqueta, com o abra�o do S�rgio”.

� precisamente esta c�pia a �nica dispon�vel em um arquivo p�blico (duas est�o com os herdeiros do escritor e das restantes n�o se tem not�cia). O material chegou � UFMG em agosto de 1989. Quatro anos ap�s a morte de Henriqueta, sua fam�lia doou � Faculdade de Letras os fundos documentais da escritora – 4.637 livros, 3.101 peri�dicos e 4.205 documentos. Pois nesses 4 mil documentos, entre originais, cartas, fotografias e mobili�rio, estava a c�pia xerox dos di�rios de Rosa.

Foi o acervo de Henriqueta que deu origem ao Acervo dos Escritores Mineiros. Fundado em 2003 na UFMG (localiza-se no terceiro andar da Biblioteca Central no campus Pampulha), o espa�o abriga hoje o acervo de outros 12 escritores (como Cyro dos Anjos, Murilo Rubi�o, Oswaldo Fran�a J�nior) e 12 cole��es especiais.

O di�rio de Rosa permaneceu nas sombras por longos anos. “Quando o material da Henriqueta chegou, em 1989, houve todo um trabalho para revitaliz�-lo, dentro dos princ�pios arquiv�sticos. A exist�ncia do di�rio s� foi indicada no final dos anos 1990”, relembra Marques.

O trabalho efetivamente s� foi iniciado em 2001. Na �poca, bolsistas da universidade digitaram o texto. Georg Otte, professor de alem�o, ficou respons�vel por traduzir as passagens escritas nessa l�ngua – h� v�rios recortes de jornais alem�es da �poca. Marques e Eneida Maria de Souza fizeram as notas de p� de p�gina.

Hoje, o conte�do do di�rio est� dispon�vel apenas a quem se dispuser a consultar o caderno de pequenas dimens�es em formato de livro. E, obra de quem levou as p�ginas para uma m�quina de xerox 46 anos atr�s, a ordem n�o � cronol�gica – o caderno come�a com anota��es de 1941, recua a 1939 para depois voltar para o in�cio de 1940. A seguir, sete trechos do di�rio, selecionados pelo Estado de Minas, que consultou todo o seu conte�do na semana passada.


20 de setembro de 1941


Judeus sem distintivo

Comunicado oficial: o decreto policial sobre a identifica��o dos judeus de 1° de setembro de 1941 prev�, no § 3, que a regulamenta��o sobre a identifica��o dos judeus com a estrela de Davi e sobre a proibi��o dos judeus de deixar o munic�pio sem autoriza��o por escrito da pol�cia local, assim como de usar ordens e condecora��es e quaisquer outras ins�gnias, n�o se aplica a) ao c�njuge judeu vivendo em matrim�nio misto, desde que dele tenham surgido descendentes e desde que estes n�o sejam considerados judeus, mesmo se o matrim�nio deixou de existir ou o �nico filho tenha falecido na atual guerra, b) � esposa judia no caso de n�o ter havido filhos durante o matrim�nio. (Artigo de jornal colado ao di�rio)

�ntem come�ou a obriga��o do distintivo na roupa dos judeus. Hoje, � tarde, vi o primeiro: um rapazola, simp�tico, dando o bra�o a um cego (dist. de cego, no bra�o).

6 de setembro de 1941

Passeei de autom�vel com Ara. Passamos na Grindelberg. A venda dos judeus. At� crian�as de 4 anos, ou menos, com o distintivo amarelo, infamante!
E o povo do partido, vendendo Abzeichen (sinal, marca): hoje � a swastika atrav�s dos tempos...
O p�r-do-sol, no Alster (rio de Hamburgo). (O dia foi belo, mas com alguma n�voa):

 

 

 

 

19 de junho de 1940

 

Estou escrevendo na cama, ao som dos estampidos da Flak (artilharia anti-a�rea). Alguns s�o t�tricos: como socos retumbantes, dados por punhos enormes no bojo el�stico do ar alto. Outros ribombam festivos. Uns tocam bombo ou tambor. Antes-de-ontem est�o dizendo que caiu uma bomba no Alster, na Schwanenwik (estrada), perto de Hartwicusstrasse (nome de rua). Houve peixes mortos, galhos de �rvores arrancados, vidra�as partidas. Eu penso que foi da Flak.
�s vezes, parece que uma pedra grande caiu para cima, caiu no c�u sonoro, que � �gua enorme, lagoa c�ncava (e sonora). Escuto, baixo, n�tido, esportivo, automobil�stico, trepidante, o zumbido da Royal Air Force.

 

 

15 de agosto de 1939

 

Notas, de mem�ria, ap�s apressada leitura do Br�s Cubas, de Machado de Assis:

 

1 – M. de A. gosta, usa e abusa, da constru��o tern�ria: silog�stica ou hegeliana – premissa maior ? premissa menor ? conclus�o; ou tese ? ant�tese ? s�ntese. A cada passo a gente esbarra com vest�gios desse vezo, quando n�o com a arma��o completa, a qual pode ser decomposta de v�rias maneiras: um pulinho para a direita, outro para a esquerda, outro para a frente... quando n�o para tr�s. Etc.

2 – Adquiri certeza, quase absoluta, de que ele, antes mesmo de compor os seus livros, ia anotando: pensamentos, frases, etc., em livro ou em cadernos especiais, esp�cie de surr�o ou alforge, de onde sacava, aos punhados, ou pin�ava, um a um, os elementos de reserva que houvessem resistido ao tempo conservando-se bem. (Processo ali�s muito louv�vel. Tanto quanto o h�bito de compulsar dicion�rios, vis�vel em M. de A.)
3. – De verdadeiramente interessante, � no livro: a) o cap�tulo: “� minha”, onde o autor descobre a “lei da equival�ncia das janelas”; b) o cap�tulo “O momento oportuno”, onde descreve: “N�o h� amor poss�vel sem a oportunidade dos sujeitos”; c) a filosofia humanit�tica (M%) de Quincas Borba;
4. – N�o pretendo ler mais Machado de Assis, a n�o ser nos seus afamados contos. Talvez, tamb�m o come�o do Dom Casmurro, do qual j� li cr�tica que me despertou a curiosidade. N�o pretendo mais l�-lo, por v�rios motivos: acho-o antip�tico de estilo, cheio de atitudes para “embasbacar o ind�gena”; lan�a m�o de artif�cios baratos, querendo for�ar a nota da originalidade; anda sempre no mesmo trote pern�stico, o que torna tediosa a sua leitura. H� trechos bons, mas mesmo assim inferiores aos dos autores
ingleses que lhe serviram de modelo. Quanto �s ideias, nada mais do que uma desoladora disseca��o do ego�smo, e, o que � pior, da mais desprez�vel forma do ego�smo: o ego�smo dos introvertidos inteligentes. Bem, basta; chega de Machado de Assis.

5 de julho de 1940


Tiros, sem alarme, �s 4 horas da tarde. 7’para 7 horas = um tiro de Flak, e logo a Warnung! (Eu estou em casa, com Ara. Perguntei: – Voc� ouviu o tiro...?! – Nesse momento as sirenes tocaram.)
Comi cerejas. Boca vermelho, escuro p�em as cerejas na gente.

Vinte minutos para 1 hora da manh�. (Estava conversando sobre mudan�a para lugar seguro): Mugem as sirenes....!

 

 

27 de junho de 1940

 

Anivers�rio. Almocei com o C�nsul Geral, empadinhas de camar�o. Fui a Harburg, comer cerejas. A 1 hora e pouco, alarme a�reo. Dizem que houve ataque a�reo, ontem de-dia, em Travem�nde (bairro de L�beck, cidade pr�xima de Hamburgo, onde est� um dos maiores portos da Alemanha).
No dia 26, fui com Ara ver o cemit�rio de Ohlsdorf (maior cemit�rio-jardim do mundo). Belo. Aves, flores, rosas, a capela (n. 5) queimada. Os bancos nas sepulturas. As l�pides votivas, pelos que ficaram

no ch�o franc�s, de 1914 a 1918. Os cora��es postos sobre um ch�o de tumba. Poesias. Al�ia de carvalhos. Os pinheiros azuis. (Silber ou Blautaunne). (esp�cie de pinheiro). “Ruhe sanft” (descanse em paz) 

 

 

26 de agosto de 1940 


O alarme de ontem para hoje durou mais de 4 horas e meia: (de 11,25 at� depois de 4 hs.)

Os jornais d�o que os ingleses sobrevoaram Berlim, jogando bombas incendi�rias e Flugbl�tter (panfleto). D�o tamb�m que Londres continua sendo bombardeada, pelos “Stukas” (abreviatura de Sturzkampfflugzeug, avi�o de combate).
Hoje, finalmente, chegou o bom tempo. Sentado no terra�o lateral do Alster Pavillon, eu contemplava o Pequeno Alster, pudica piscina quadrangular (?). Tarde bela (7 horas) e morna, acondicionada em algod�es cinzentos (luminosos), enfuma�ada como um c�u de Agosto em Minas. H� um momento em que o ar e o c�u embranquecem, antes de passarem de cinzento a azul. Eu esperava que a tarde azulescesse. E via, l� adiante, a Lombardsbr�cke (ponte sobre o rio Alster).

 

 

 


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