Jornal Estado de Minas
Entrevista/Gustavo Penna - 73 anos, Arquiteto e urbanista

Fonte inesgotável de criação



Quando se fala de arquitetura o primeiro nome de referência profissional na ativa, no país, é sem dúvida o mineiro Gustavo Penna. Este ano ele completa 50 anos de profissão, pela qual é apaixonado. E recebe merecidas homenagens, como uma solenidade, na última sexta-feira na Câmara Municipal de Belo Horizonte, que ficou pequena para receber o número de amigos, colegas e clientes que fizeram questão de prestigiá-lo. Apesar de estar escondido entre as montanhas, como ele mesmo diz, seu trabalho ecoou mais alto e o mundo conhece e reverencia o mineiro, que desde menino já sabia o que queria fazer pelo resto de sua vida e consegue, de forma única, mostrar que a arquitetura é viva, pulsante, poética e pode transformar vidas e cidades. Seus trabalhos já foram publicados em uma centena de vezes nas principais revistas e sites especializado do mundo, já ganhou algumas dezenas de prêmios nacionais e internacionais. Fez e faz todo o tipo de projeto, desde uma cadeira até prédios, museus, monumentos, praças, e apesar de já ter alcançado o topo, afirma que ainda tem muito o que fazer e continua sonhando e criando conceitos para oferecer um trabalho que melhore a 
vida das pessoas.
 
Em homenagem a este profissional e amigo, o Caderno Feminino & Masculino reedita entrevista publicada em 2018. Perguntado como se sente com a homenagem e a data tão importante, Gustavo disse: “Receber uma homenagem da cidade onde eu nasci me emociona profundamente, porque é o reconhecimento, talvez, do que o arquiteto pode fazer pela cidade. Reconhecimento da nossa atuação como criador de espaços, de ambientes, de símbolos novos para a cidade, de coisas que atendem as pessoas.
Os trabalhos que fizemos, a vida toda, foram no sentido de criar ferramentas de convivência, de homenagear nossa atmosfera nosso clima, nossa região de Minas. Mas tenho pra mim uma coisa mais importante. Tive meu avô, José Oswaldo de Araújo, que foi prefeito de BH e antecedeu Juscelino Kubitschek. Tive meu tio-avô, Otávio Penna, que também foi prefeito e projetou várias coisas para a cidade, inclusive o Mercado Municipal de Belo Horizonte, quando não tinha cobertura. Minha mãe é belo-horizontina, sou filho de uma belo-horizontina. Minhas referências são todas dessa cidade. Aqui tem meus grandes amigos, meus grandes exemplos.
Vivo no meio dessa gente que faz arte e me sinto muito incorporado a tudo isso, dessa cidade tão criativa e tão cheia de estímulos. E que nos provoca hoje em dia a torná-la contemporânea para impedir que se façam mais maldades com ela. Essa homenagem me traz mais responsabilidade de lutar por Belo Horizonte, lutar com as pessoas que somam, que não querem destruir a história e nem destruir a beleza e o meio ambiente, e querem que a cidade seja gentil, que possamos viver em alegria e harmonia, e ser uma cidade generosa com o cidadão.”
 
Como e quando se interessou pela arquitetura?
Acho que caí da laje (risos). Sempre mexi com oficina, fazia papagaio, criava carrinho de rolimã. Minha vida de menino sempre foi muito de trabalho manual, mexi muito com montagem, com fazer caixote. Sempre trabalhei com essa coisa, mas não era um desenhista. Quando cheguei aos 13 anos, resolvi desenhar e desenhei muito. Essa coisa de ficar sozinho com o desenho, e com o trabalho manual e a curiosidade do funcionamento das coisas, me levou a isso.
Por outro lado, meu pai, Roberto Magalhães Penna, foi um dos construtores de Brasília, então acho que herdei essa vocação dele.
Uma vez eu escrevi que não sabia se meu pai era certo ou errado, só sei que ele foi real. Tem muita gente que fica idealizando o pai. Meu pai foi real, concreto, absolutamente visível e tangível. Com todas as suas falibilidades, suas falhas humanas, suas inseguranças, seus sofrimentos, foi grande. Teve coragem de começar Brasília. Foi o primeiro engenheiro a pisar em solo brasiliense. Foi ele quem escolheu onde construir o Catetinho, onde colocar o piso de pouso, captação de água, etc. Inclusive tudo isso é contado no livro do Juscelino.
A Pampulha também me influencio muito. Meu avô, Gustavo Penna tinha uma casa lá e eu vivia nas obras da Pampulha. O bairro já tinha sido inaugurado há 20 anos quando eu o frequentava.
E ficava andando entre os prédios. Era completamente vazia, era o Iate, a Casa do Baile, a Igrejinha e algumas casinhas na orla. Umas canoas, a Ilha dos Amores onde íamos pegar carrapato (risos). E a gente via Oscar Niemeyer, aquela coisa espetacular. Ele mostrou que com poucos metros quadrados é possível alterar a vida de um país, é só ter a chance. Todo mundo é muito cheio de teorias, o segredo talvez seja trabalhar nessa dimensão mais sutil e imaterial das pessoas. Isso é o que mais me seduz, quando conseguimos ver quais são essas forças além do tempo que ficam dentro da gente.

Tenta descobrir essa imaterialidade em seus clientes para projetar para eles?
Para mim a arquitetura não é dentro e nem fora, é através. Arquitetura é através da conversa, dos espaços, dos sentimentos. Não é uma coisa estática. Assim também é o Urbanismo.
Meu cliente me conta histórias e eu conto outras para ver se o entendi. E o cliente pode ser uma pessoa, um casal, uma família, e também uma instituição, uma cidade. Arquitetura é saber ouvir, não é feita de aço, concreto, ferro, é feita de palavras. Quando você fala leveza, tem uma tonelada de concreto ficou suspensa. Quando se fala uma palavra você vê que ela, imediatamente, fica tridimensionalizada. Se fala aconchego, por exemplo, as estruturas se curvam em torno de você. Cada gesto que você faz na arquitetura corresponde a um gesto que faz com o corpo, e esses gestos ficam congelados, tridimensionalizados, presos na arquitetura, por isso tem que estudar bem que gesto fazer para que não faça um cestro, algo desarmônico, temos que fazer coisas harmônicas. Sou daqueles que acreditam que as cidades são resultados dos gestos que você faz em seu território. Se fizer gesto grosseiro, vai somando gestos grosseiros e a cidade também fica assim. Se você fizer gentilezas, coisas amorosas, harmônicas, generosas, muda o clima da cidade.
 
 

Você tem um conceito muito particular de arquitetura...
Tenho, e procuro sempre evoluir nesse conceito. Acabei de inventar um conceito, que faz parte do livro que estou escrevendo, que é o conceito das “generoscidades”, que são cidades generosas, mais do que gentis, porque gentileza é uma coisa que passa rápido, é um gesto de elegância e cidadania, mas passa. Você faz a gentileza e vai para casa feliz; a pessoa que recebeu a gentileza também fica feliz, mas a “generoscidade” implica em compromisso, durabilidade do gesto. Gostaria de fazer cidades generosas, onde as pessoas se doassem um pouco para o espaço coletivo. Onde convivemos com o nosso co-cidadão, nossos símbolos, nossa história e referências. Isso é ato de sair de dentro de si. Estou trabalhando muito nessa ideia dos gestos.

Dê exemplos de obras com este conceito
Existem vários pelo mundo, mas preciso exemplificar com as experiências que a vida me proporcionou. São coisas que estão durando na cena urbana, que foram interpretadas pelos moradores da cidade. Dentro do que eu já fiz, o que encaixa no conceito de “generoscidades”é o quarteirão fechado da Rua Rio de Janeiro acima da Praça Sete – sempre que passo por lá vejo como é movimento e também uma ferramenta de convivência da cidade; o Espaço Popular de Contagem; a Escola Guignard. Outra é a Academia Mineira de Letras, respeitando o passado do prédio do Luiz Signorelli e gerando um ambiente aberto para a Rua da Bahia, é uma maneira de dizer que esta rua é importante para a cultura e para a literatura de Minas. E tem também o Parque Ecológio da Pampulha, que acho importante com seus espaços abertos, não tem muito equipamento, muito zanga burrinho. É só espaço, grama e árvore.
 
Temos que fazer coisas substantivas e não adjetivas. Elas duram muito mais, a cidade precisa de substantivo, lugar, espaço. Fiz aquele que teima em não ficar pronto que é o espaço multiuso do Parque Municipal, mas que eu chamo de varandão do parque. Local para a Orquestra Sinfônica tocar, para educação ambiental, para juntar os meninos.

O início de sua carreira foi muito difícil?
Comecei a trabalhar antes de formar. Não fiz estágio em escritório de arquitetura, como eu recomendo que seja feito. Comecei a trabalhar com meus colegas e arrumei um tio-avô, o Lincoln Continentino, que olhava nossa produção para ver se estávamos fazendo loucura, nos acompanhava, orientava e assinava nossos trabalhos. Ele foi um grande urbanista de Belo Horizonte. Interagíamos com ele. Devo muito aos meus professores e sou gratíssimo a eles e às minhas referências na profissão. Reverencio todos eles porque a gente tem que ter pai. Não me sinto uma eclosão espontânea, é importante ter origem. Tenho essa gratidão às pessoas que me ajudaram a caminhar, como por exemplo o Amilcar de Castro, meus colegas de profissão como o Álvaro Hardy e o Éolo Maia, meu grande mestre Humberto Serpa. São pessoas que são parte da minha vida, que agradeço diariamente, exercício diário de uma crença, de uma entrega.

Quem mais foi sua referência profissional?
São tantos e tão especiais. É como se olhasse uma paisagem e visse os relevos, os picos dessa paisagem. Não citar o Oscar Niemeyer seria um pecado, ainda mais eu que sou do Conselho da Fundação Oscar Niemeyer, eleito pela família dele para estar lá. Em Minas Gerais o Rafael Hardy e o Shakespeare Gomes.

Tem algum lema que leva com você?
Gosto de pensar que para sermos inteiros temos que ter os pés no chão, os olhos no horizonte e a cabeça nas estrelas. Pé no chão para poder fazer, executar, é a verdade, o real. Os olhos no horizonte para não perder o norte, o rumo, a caminhada, a direção. E a cabeça nas estrelas porque se você não sonhar não exerce uma das dimensões mais espetaculares do dom que o homem tem que é criar, intuir.

Qual foi seu trabalho que representou sua identidade profissional e foi reconhecido em âmbito maior?
O prédio da TV Bandeirantes, na Av. Raja Gabaglia. Eu tinha 28 anos, foi em 1978. Aquele prédio tem 40 anos e é um prédio atual até hoje, é uma vertical e uma grande horizontal sentadas sobre o terreno natural, só descendo uma janela. Cometemos um erro histórico, projetar a cidade pela superfície e pela topografia. Deveríamos começar pela geologia. As nossas cidades têm os modelos de uso e ocupação do solo mais pobres do mundo. Fazemos casas ou torre. A partir do solo, é preciso compreender a não cortar demais, não ferir a terra, deixar o rio correr, porque rio foi feito para correr e inundar. As cidades têm que ter áreas de permeabilidade, exatamente para não encher o rio rapidamente.

Como é o reconhecimento do seu trabalho além das nossas fronteiras?
Temos que acreditar, um cara que acreditou foi o Niemeyer. Uma coisa pequena como era a Pampulha ganhou visibilidade internacional. Hoje, quem chegar em qualquer lugar do mundo e disser “sou arquiteto brasileiro”, a pessoa vai falar “você vem de uma terra que tem arquitetos”. Recebemos inúmeros prêmios nacionais e internacionais, que mostram que existe uma visibilidade do mundo em relação à nossa produção. Isso não existia. Ganhamos este ano o Prix Versailles, que dos maiores prêmios do mundo na área de arquitetura para comércio e atividades de lazer com o Ateliê Wäls, um complexo dedicado ao conceito de cerveja arte da marca que simula uma imensa barrica de madeira aberta sobre as montanhas verdes de Belo Horizonte. O projeto foi reconhecido pela Unesco e pela União Internacional dos Arquitetos. Ganhamos o WAF – World Arquitetural Festival, em 2014, com o Monumento à Liberdade de Imprensa, de Brasília. E o prêmio da ArchitizerA+Awards, em 2015, com as estações Move BRT. Isso serve de incentivo para nós. Estamos escondidos entre as montanhas, achando que ninguém está prestando atenção em nós. Na medida que fazemos o trabalho neste mundo conectado, se consegue ter esse reconhecimento. Já fomos publicados em revistas e sites especializados do mundo inteiro. Fiz a Capelinha de Todos os Santos, em Matozinhos, que saiu em todos os lugares.

Já fez muitos trabalhos no exterior?
Sim, já fizemos na África, na América Central, em Portugal, no Algarve. Mas agora estamos saindo para uma coisa mais conectada, e vamos fazer coisas nos Estados Unidos e vai o meu escritório todo, a equipe inteira, que é alegre, extremamente viva. Millor Fernandes disse certa vez que chato é ser especialista, porque é o cara que só não é ignorante em uma coisa. O especialista tem uma vida empobrecida pela rotina.

Está dizendo que seu escritório é diversificado?
Muito diversificado. Fazemos coisas de tamanhos variados, desde uma capelinha, uma cadeira, até uma cidade. Fazemos projetos de todas as dimensões.

Pode falar de outros projetos em andamento?
Estamos fazendo o Museu Regina Mundo, na Serra da Piedade. È considerar que a Serra da Piedade é a própria imagem de Maria, com seu manto cobrindo o mundo inteiro, partindo dali. O que denota presença é só uma aureola, um anel de aço de 25 metros de diâmetro, fixado na pedra, e o museu está todo escondido entre as rochas naturais do terreno. Outro projeto que tenho muita emoção de ter feito é o Museu de Aleijadinho, em Congonhas. A Escola Guignard, o Museu de Sant'Ana, em Tiradentes. Coisas extremamente variadas. Quando tinha 19 anos fiz estágio no Patrimônio Histórico Nacional no Rio de Janeiro e o coordenador do setor era o Lúcio Costa. Um dia ele me chamou pelo nome e eu quase cai duro para trás.

 
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