Pudesse salvar vidas num dilúvio, o médico-veterinário Leonardo Maciel Andrade, de 46 anos, como Noé, não deixaria para trás os animais. São quase 200 em seu hospital 24 horas, na Pampulha, com espaço e acomodações para bem menos da metade. A superpopulação de bichos de toda natureza – da qual fazem parte 12 baratas de Madagascar e um dragão-barbudo da Austrália – já tomou conta até da sala do doutor. São tamanduás, jaguatiricas, raposas, macacos, serpentes, gambás, porcos-espinhos, gaviões, tucanos, papagaios, corujas e um urubu. Em cada cômodo do casarão, com barracão de fundos com gatos, pombos e cachorros, uma surpresa aos visitantes. “Olha, tem mais este”, diz o doutor, trazendo na palma da mão um filhote de beija-flor com pouco mais de dois centímetros. “Chegou aqui trazido por particular. Estava no ninho, debaixo da mãe morta”, conta, alimentando o pequeno órfão com microssonda. Já virou rotina. Pessoas de bom coração, que conhecem o trabalho voluntário de Leonardo, volta e meia estão à sua porta com algum bichinho ferido. Mas a grande maioria dos socorridos é trazida pela polícia, resultado de batalha sem fim contra o tráfico e pelo resgate dos acidentados.
Leonardo Maciel é credenciado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para trabalhar – sem qualquer remuneração – pela proteção dos animais. Missão levada muito a sério, custeada por recursos gerados pelos serviços prestados a particulares. O médico, presidente da organização não governamental (ONG) Associação Bichos Gerais, tem encabeçado projeto para criar em Minas, já a partir do próximo ano, o maior centro de recolhimento e tratamento de animais do mundo. O projeto prevê construção de abrigo no Parque Fernão Dias para 12 mil animais e reúne esforços do Ministério Público, do Ibama, da Polícia Militar de Minas Gerais, de voluntários e de algumas empresas privadas, além de apoio da World Society for the Protect of Animal (WSPA). O doutor acredita que a iniciativa vai ajudar a diminuir o sofrimento de muitas espécies, que tendem a desaparecer com a ação predatória do homem.
Tráfico Depois das drogas e das armas estão os animais. É o terceiro maior mercado ilegal do planeta. E Minas Gerais é rota do tráfico de espécimes silvestres, que seguem para os Estados Unidos e para a Europa. Por ano, segundo Leonardo, são apreendidos 16 mil animais só em Belo Horizonte e região metropolitana. “Em outras capitais, não passam de 6 mil apreensões. Há um trabalho muito bem feito pela Polícia Militar Ambiental de Minas Gerais, sem dúvida a mais eficiente do país. Mas a legislação ambiental é muito fraca, não consegue conter o tráfico. O traficante é preso, recebe uma multa impagável, é solto e volta a traficar”, denuncia.
Com um único criminoso foram apreendidos 40 papagaios. Muitos deles sem língua, com doença provocada por maus-tratos. Situação que revolta o médico: “Pense bem, são jovens, não podem ser soltos porque não dão conta de se alimentar. Vão ter que viver em média 70 anos num cativeiro, comendo por meio de mamadeira”. Doutor Leonardo mostra fotografias que chocam: são aves e primatas transportados em tubos de PVC e garrafas PET. Imagens tristes, como a de um macaquinho apreendido, espremido dentro de uma garrafa térmica. Ou de inacreditáveis amontoados de ararinhas-azuis e de arajubas, espécies em extinção mortas , documentadas pelo médico.
“Pela internet, hoje, você acha tudo”, diz Leonardo, se referindo aos animais exóticos comercializados por bandidos de todos os continentes. Os criminosos chegam a traficar ovos de insetos sob selos de postagens. “Os correios são muito usados pelo tráfico”, revela. No hospital, sob cuidados especiais, estão 12 baratas de Madagascar. “Foram deixadas por um anônimo”, conta. Há ainda um dragão-barbudo, vindo da Austrália. “É muito comum esse tipo de abandono”, diz. “A pessoa acha bonitinho, compra para ter em casa. Depois se cansa e se desfaz.”
Para o veterinário, o homem, maior de todos os predadores, continua bastante equivocado em relação às outras espécies. “Não podemos nos preocupar com a discriminação apenas pela cor da pele, mas, também, pelo tipo da pele. Não pode importar se tem pelo, casca ou escama. É preciso considerar direitos iguais à sobrevivência”, defende. Segundo o médico, vegetariano, não é porque o homem tem capacidade intelectual maior que pode continuar fazendo o que faz. Para essa versão moderna de Noé, já está passando da hora de o bicho-homem repensar os valores da ética, da vida e da liberdade.
Macaco Bugio
Em extinção, são quatro sob os cuidados do ambientalista. A PM estourou dois cativeiros clandestinos na Região Metropolitana de BH
Garça-branca
Perdeu metade de uma das asas em um acidente com linha de pesca. Não pode ser solta porque não consegue mais voar
Jaguatirica
Ciça veio de Belém do Pará. Foi criada desde filhote acorrentada a uma árvore. Quando chegou ao hospital, desnutrida, não dava conta de ficar de pé
Tucanos
Nos últimos meses, 11 foram resgatados pelo Ibama e pela polícia. Sete voltaram a voar e ganharam a liberdade. Quatro não têm condição de sobreviver por conta própria
Corujas
Estão entre as maiores vítimas das linhas de pipas. Também chegaram ao abrigo levadas pela polícia. Acidentam-se também em colisões com vidros e antenas
Papagaios
São 52, vários deles tomados das mãos de traficantes. Alguns, assim que recuperados, serão soltos. Estes cinco, sem língua, vão passar o resto da vida em cativeiro
Mico-estrela
Pai, mãe e filhos estão para ganhar a liberdade. Lugares de proteção ambiental estão sendo examinados para a soltura da família, resgatada pela polícia
Tamanduá-bandeira
São quatro. Este é o Zé Colméia, filhote que ainda se alimenta por mamadeira. Trazido pelo Ibama, faz parte de um projeto de pesquisa por monitoramento