Passados seis meses do suposto assassinato de dois brasileiros na Amazônia peruana, o mistério sobre as circunstâncias das mortes continuaAs famílias do engenheiro mineiro Mário Augusto Soares Bittencourt, de 61 anos, e do geólogo paulista Mário Gramani Guedes, de 57 anos, pediram nova prorrogação da investigação sobre o caso, que não evoluiu para a prisão de suspeitos e nem sequer resultou até agora em laudo sobre a causa da morteAngustiados com a falta de respostas, parentes dos profissionais mortos a trabalho passaram a conduzir apuração paralela do crime, que envolveu a contratação de perito independente e até a ida ao Peru, apoiada pela empresa Leme Engenharia, onde ambos trabalhavam na área de projetos de usinas hidrelétricas
Segundo Liliana Guedes, viúva de Mário Guedes, em conversa com os familiares das vítimas, o legista peruano indicou que iria concluir o laudo apontando “morte natural” de duas pessoas, simultaneamente, provavelmente em 25 de julho, durante trabalho de prospecção para a construção de usina hidrelétrica em acordo bilateral Brasil-Peru“É uma vergonhaEstá faltando empenho do governo brasileiro em mandar apurar em que circunstâncias morreram dois de seus cidadãos que estavam trabalhando lá fora”, protesta
Entre as discrepâncias encontradas pela família está a falta de uma das fotos da máquina de Mário Bittencourt – que pode ter sido apagada –, a falta do cruzamento das ligações dos telefones celulares e incongruências nos depoimentos dos investigadosPrincipal suspeito, o líder comunitário Juan Zorrilla, que participou de manifestações contra a instalação de usinas hidrelétricas, teria estado na sede da empresa peruana SZ Engenharia, em 22 de julho, na sexta-feira anterior à segunda em que os dois desapareceramA SZ era a empresa contratada pela brasileira Leme Engenharia para conduzir os trabalhos no país vizinho.
O embarque dos familiares ao Peru contou com a participação da Fiscalía de Cumba, misto de promotoria e delegacia de polícia peruana, encarregada das investigações, departamento que agora ganha novo prazo, até 12 de fevereiro, para encerrar o inquéritoDurante o encontro, o legista afirmou que os dois teriam morrido em função de um golpe de calor“É impossível, pois naquele dia a temperatura estava em 24 graus centígrados e era inverno no Peru
“É um esculacho Parece que há interesse em encobrir as coisas e não em descobrirO legista peruano é médico, mas também é inca e a cultura deles lá é diferenteA proteção à natureza é um dogma para eles”, comenta o engenheiro Cláudio Bittencourt, irmão de Mário BittencourtEle critica o fato de as roupas que os brasileiros usavam no dia não terem sido incluídas no inquérito“Havia indícios de suco gástrico e de fezes
Segundo ele, a comunidade peruana é claramente contrária ao acordo bilateral com o Brasil para a construção de diversas barragens no país vizinho“O acordo é bom para o governo peruano, que vai receber royalties, e é bom para o Brasil, que terá energia limpa sem alagar as próprias terrasA população peruana é que fica com o passivo de inundar as terras agrícolas e as comunidades indígenas para a construção das represas Eles não querem essas represas”, lembra
Apuração e mistério em terras peruanas
Em busca de informações que ajudassem a esclarecer o mistério que cerca a morte dos brasileiros, o Estado de Minas desembarcou no Peru pouco mais de 10 dias após a descoberta dos corposEm reportagem publicada em 7 de agosto, depois de levantamentos em cidades e na zona rural da região onde trabalhavam o engenheiro e o geólogo, o EM já mostrava a descrença de parentes em relação às hipóteses oficiais e ao andamento dos trabalhosA apuração revelou também que o próprio Ministério Público local levantou elementos que levaram a promotoria a trabalhar com a hipótese de homicídio e a investigar dois camponeses pelas mortesA falta de conclusões, tanto nos levantamentos realizados no país vizinho como em exames feitos no Brasil, passados seis meses do episódio, mostra que os temores dos parentes das vítimas eram mais do que justificados
Falhas em série
Novos questionamentos levantados pelas famílias
» A falta de uma das fotos da máquina fotográfica de Mário Bittencourt, que pode ter sido apagada, não foi investigada
» Não foi feito o cruzamento das ligações dos telefones celulares
» Incongruências nos depoimentos dos suspeitos não foram exploradas
» O principal suspeito, o líder comunitário Juan Zorrilla esteve na sede da empresa peruana SZ Engenharia no dia 22 de julho, na sexta-feira anterior à segunda-feira, 25 de julho, dia em que os dois brasileiros desapareceramA informação não consta nos autos
» O legista peruano levanta hipóteses seguidas para a morte: primeiro de hipotermia, depois de ingestão de remédios para pressão alta e a última de golpe de calor
» As roupas que os brasileiros usavam no dia não foram incluídas no inquéritoHavia presença de vômito e diarréia, possíveis indícios de envenenamento
Entenda o caso
2011
23 de julho
O engenheiro mineiro Mário Augusto Soares Bittencourt, de 61 anos, e o geólogo paulista Mário Gramani Guedes, de 57 anos, desembarcam em Lima e seguem de avião para Chiclayo, no Norte do país, e de lá, de carro, para Jaén, a 600 quilômetrosEles foram fazer estudos de viabilidade para construção de uma usina hidrelétrica na Amazônia peruana.
25 de julho
O trabalho de campo começa cedoA dupla brasileira, um engenheiro e um geólogo peruanos caminham por uma estrada abandonada por cerca de duas horas e meiaSegundo o depoimento dos peruanos, Bittencourt sentiu dor no joelho e se sentou à beira da estrada
Guedes e os colegas seguem por um trecho de subidaAo voltar, meia hora depois, já não encontram o engenheiro mineiroGuedes, então, decide esperar no local pelos peruanos, que tentaram acesso por outra trilha para chegar ao Rio Marañon
Os peruanos contam à polícia que retornaram uma hora depois e que Guedes também não estava no localSegundo eles, a impressão foi de que os dois brasileiros teriam retornado para o carro estacionado no início da estrada, onde o motorista os aguardava
O inquérito peruano indica que os funcionários da SZ Engenharia só perceberam o desaparecimento quando um outro colega, responsável pela logística, levou água aos pesquisadores e comentou que não havia cruzado com os brasileiros na estrada
27 de julho
Os dois corpos são encontrados pela polícia peruana às 8h, a 100 metros da estrada principal, em área de cerradoA distância entre os dois era de 200 metrosNada foi roubado e não havia marcas de violência, segundo a polícia.
Segundo o engenheiro e o geólogo peruanos, dois camponeses são investigados pela morte de Bittencourt e GuedesUm deles, Juan Zorrilla Bravo, é líder comunitário e participou de manifestações contra usinas hidrelétricasEle teria atrapalhado as equipes de busca, conforme depoimento dos peruanosO outro, Jésus Sanchéz, teria oferecido água aos brasileiros no início da caminhada
Os corpos são examinados no Peru, mas não são detectados indícios de violênciaA pedido das famílias, amostras são enviadas para análise no BrasilAutoridades peruanas fazem reconstituição, com a participação de ZorrillaOs acusados prestam depoimento e negam envolvimento nas mortes.
31 de agosto
O Instituto Médico Legal (IML) de Brasília divulga resultado das análises histopatológicas e do exame toxicológico, que não detecta nenhum tipo de substância tóxica para os padrões e dosagens pesquisadosOs testes foram feitos com pelo menos 10 tipos de veneno mais frequentes em casos de assassinato Venenos de plantas e cobras, por exemplo, não são testados.
1º de setembro
O Instituto Médico-Legal (IML) de Belo Horizonte confirma oficialmente que o engenheiro mineiro não morreu de causas naturaisOs exames minuciosos, pedido exclusivo da família de Bittencourt, descartam outros tipos de morte violenta, mas não são conclusivos para análises toxicológicas
Peritos do Setor de Antropologia testam 816 substâncias e não encontram elementos inorgânicos comuns em envenenamentos, como medicamentos, estricnina, cianureto ou arsênicoO estágio avançado de decomposição do corpo dificulta as investigações Venenos orgânico – de ervas, répteis e anfíbios, por exemplo – são substâncias que se desintegram com o corpoNenhuma mordida de cobra é identificada
Segundo o IML, duas hipóteses não podem ser descartadas: a de envenenamento por substâncias orgânicas e de sufocamento.
16 de setembro
Testes laboratoriais feitos em Lima têm resultado inconclusivoOs exames de sangue tiveram resultados negativos para as substâncias investigadas, assim como os das amostras de tecidos estudados – cérebro, fígado, baço, pâncreas, coração, pulmão e rim – porque as células já estavam em decomposição
Advogado contratado pela Leme Engenharia envia as roupas das vítimas para perícia particular, que aponta traços de sangue e vômito, indícios de envenenamento.
4 de dezembro
Inquérito que deveria ser concluído nesta data é prorrogado até 12 de janeiro
2012
12 de janeiro
A conclusão do inquérito é prorrogada de novo, desta vez para 18 de fevereiro