Jornal Estado de Minas

Interpretação à flor da pele

Grupo de atores percorrem corredores do Mercado Central às cegas

Grupo de atores chama a atenção no Mercado Central percorrendo corredores às cegas, em preparação para a peça Feliz Ano Novo, espetáculo a que o público "assiste" vendado

Jaqueline Mendes
Cada um com seu guia, integrantes do elenco desfrutaram de uma 'rave para os sentidos' universo de sensações do mercado - Foto: Cristina Horta/EM/D.A Press
Não é para qualquer um a entrega.
Tanto que teve ator que desistiu quando soube que não teria “fala”. No teatro dos sentidos, especialmente, o texto é efeito. Em questão está a alma. Ontem, o Mercado Central de Belo Horizonte foi laboratório para esse rico experimento humano de sensações. Pelos múltiplos corredores do quadrante mais disputado das manhãs de sábado na cidade, 12 atores abriram mão da visão para explorar e dilatar a presença em outros sentidos.

O exercício faz parte da preparação para o espetáculo Feliz Ano Novo, que a atriz, poeta e diretora Paula Wenke traz a Belo Horizonte de 11 a 14 de dezembro. A montagem reúne 14 atores mineiros preparados pela encenadora carioca, que também está no elenco. Paula, graduada em artes cênicas pela Universidade de Brasília (UnB), fundou o Teatro dos Sentidos em 1997.
“Onde o teatro não vai?” “Onde eu posso servir?” Estavam na cegueira as respostas para o dilema de recém-formada.

De lá para cá foram três as peças encenadas para não se ver: Pluft, o fantasminha e O rapto das cebolinhas – ambas de Maria Clara Machado e para crianças –, e Feliz Ano Novo, escrita por Paula Wenke. Nos espetáculos da poeta encenadora, a plateia é vendada. Cegos e pessoas que têm boa visão, “em igualdade”, são provocados e levados a construir as imagens nas profundezas da percepção. No palco, a roupagem, o acabamento visual dão lugar aos efeitos de provocação pesquisados e trabalhados pelos atores. Tudo pelo realismo além do horizonte das histórias.

É a primeira vez que Paula Wenke tem um ator cego no elenco. Oscar Capucho, de 31 anos, é ator desde 2008. Formado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), integra o grupo mineiro Nós Cegos. É um dos mais empolgados com o processo. “Paula explora os sentidos muito além das provocações. Ela trabalha muito as intenções do texto. Se eu falo ‘distância’, eu preciso saber mostrar a distância na palavra”, diz. Para a diretora, Oscar é o “ninja”, o “faixa-preta” da trupe.

- Foto: Cristina Horta/EM/D.A PressNa manhã de treinos foram 45 minutos para cada ator, vendado, investigar os sons, as texturas, os cheiros e sabores do Mercado Central. “Uma festa rave para os sentidos”, brinca Paula.
Os intépretes “cegos” foram conduzidos por colegas guias, chamados “anjos”. O exercício chamou a atenção dos feirantes e da freguesia. Teve até público que deu bronca em dupla de pesquisadores. “Vocês estão brincando com coisa séria. Não pode imitar cego.” Glauce Leonel e Danillo Carvalho, em delicadezas, explicaram a proposta.

O moço de queijo na mão ficou interessado no trabalho. Luis Henrique, de 34, professor de educação física, ao saber do que se tratava, elogiou a ação: “Isso vai fazer ficar mais verdadeiro. Trabalho sério é assim mesmo, tem que ter pesquisa. Muito bom.” Alípio Costa, de 80, gastou o alemão para comentar a imersão de Rodrigo Estevão e Flaviana Léo: “Sehr interessant”. “Muito interessante.” Frequentador assíduo do ponto comercial, o protético acha o ser humano “curioso, muito curioso. Até se faz de cego”, sorri.

Menotti Orlandi, ator, diz ter feito descoberta: “De olhos vendados, o doce de leite ganhou mais sabor.
Quando você vê, chega a sentir o gosto antes. Não sabia o que era e quando senti foi muito bom”, descreve. Danillo se confundiu com os sabores da melancia e do melão. O artista revela ainda nunca ter ouvido tão bem os sons ao redor. Glauce, o “anjo” da vez, diz que no início estava bastante preocupada em guiar o colega. “Depois foi tranquilo. Acabei sendo guiada por ele.” A atriz diz com gosto que as pessoas foram bem solidárias no caminho.

EM CARTAZ

A estreia de Feliz Ano Novo em Belo Horizonte ocorre na quinta-feira, dia 11, no Espaço Aberto Pierrot Lunar, na Rua Ipiranga, 137, Bairro Floresta. A peça fica em cartaz até sábado, às 21h, e no domingo, às 19h. Ingressos: R$ 24 (inteira) e R$ 12 (meia). Deficientes físicos têm ingresso gratuito e acompanhantes pagam meia. Informações: (31) 3658-9743..