Jornal Estado de Minas

Barbeiro de 89 anos mantém ofício no Centro de BH e tem agenda lotada

Seu Dias, aos 89 anos, trabalha a todo vapor. Os 73 anos de ofício lhe renderam amigos, confidências, boas histórias e lembranças

Sandra Kiefer
'Quero chegar pelo menos até os 95 anos', diz José de Almeida Dias. Agora ele trabalha 'apenas' sete horas por dia, a partir das 8h, por recomendação médica e insistência da família - Foto: Cristina Horta/EM/D.A Press

Transpor as dependências do Salão de Cabeleireiro da Rua Carijós, 109, na Região Central de Belo Horizonte, significa voltar aos tempos de Getúlio Vargas. Aos 89 anos, o barbeiro José de Almeida Dias recebe os clientes na porta, impecavelmente bem vestido. Faz um rápido cumprimento com a cabeça e vai logo conduzindo-os até a cadeira giratória. Ele não tem tempo a perder. Prepara bastante espuma na bacia e ajeita o pincel antigo, com cabo de madrepérola. Em menos de 15 minutos, está feita a barba no fio da navalha, sem deixar um único corte.

Senhor Dias é homem de alma diligente e mãos ágeis, apesar da idade avançada. No ofício de barbeiro, ajudam os espantosos 73 anos de prática, iniciada quando ele tinha apenas 16 anos.
Era o ano de 1942 e a Era Vargas ameaçava chegar ao fim. Natural de Cataguases, na Zona da Mata, Dias herdou na cidade o salão do irmão mais velho, que veio tentar a sorte na capital. “Aprendi a profissão vendo meu irmão trabalhando”, conta ele, sem descansar entre um e outro corte de cabelo. “Ninguém acreditou quando ouviu dizer que Getúlio tinha se suicidado. Foi o maior comentário no salão”, diz.

Depois da chegada de uma tal de Aids, como Dias se refere à síndrome transmitida pelo sangue, o barbeiro aposentou a lâmina da navalha. Trabalha com o mesmo dispositivo, mas adaptou giletes descartáveis nas extremidades. Ele não é saudosista. “Conservo este aparelho manual aqui no balcão somente para lembrar os 18 anos sofridos com ele. É mil vezes melhor cortar com o barbeador elétrico”, compara o barbeiro, que costuma brindar os clientes com limpeza de pele e massagem no rosto, depois de fazer a barba ao custo de R$ 10. Entre os famosos, já atendeu aos prefeitos Souza Lima, Jorge Carone e ao dono de laboratórios Geraldo Lustosa. “Ele foi meu cliente até o último dia. Antes de morrer, veio aqui e cortou o cabelo. Depois, não voltou mais.
Fiquei sabendo que havia falecido”, diz.

Por ordens médicas e insistência da família, Dias viu-se obrigado a reduzir a jornada para “apenas” sete horas por dia. Às 8h, começa a atender e, às 15h, interrompe os trabalhos. A medida, entretanto, fez efeito inverso. Quando aponta na esquina da Rua da Bahia, já percebe a fila de clientes esperando por ele. De pouco adianta o apoio dos colegas Rodinê Mendes Guimarães, de 78, e do iniciante Gláucio Venâncio, de 41. “Para mim, ele é melhor de todos. Além de ser muito educado, tem uma destreza impressionante”, comenta uma manicure, que pede o anonimato para não se indispor com os outros. “É gratificante poder trabalhar ao lado de pessoa tão humana e profissional top de linha como ele”, elogia o barbeiro mais novo.

Em tom de brincadeira, Rodinê especula que Dias use uma injeção de juventude, cuja fórmula não revela a ninguém.
Na realidade, o barbeiro se define como uma pessoa de hábitos moderados, que não fuma nem bebe e se alimenta de maneira frugal, de três em três horas. De três em três meses, controla o nível de açúcar no sangue para evitar o diabetes. Não deixa de comer doces, mas reparte o pé-de-moleque com os amigos. “Todos os meus irmãos morreram com diabetes. Quero chegar pelo menos até os 95 anos”, revela ele, que usa óculos mais proteger os olhos do que para enxergar. Desde que operou de catarata, Dias foi aconselhado a resguardar a córnea da “chuva” de cabelos que saltam do barbeador elétrico.

Brincalhão e de bem com a vida, Dias se considera uma pessoa calma, até demais. O temperamento tranquilo colaborou na boa condução do trabalho e da casa. É casado com a mulher Maria Leal Dias, de 87, com que teve as duas filhas professoras, casadas e já aposentadas. Entre os netos, há um radialista, uma decoradora e uma médica, que daqui a dois meses dará a primeira bisneta a ele. As fotografias de todos estão guardadas dentro de um envelope, em lugar especial no balcão. E também no coração.

CLUBE DO BOLINHA Dias tenta “fazer a cabeça” dos mais amigos em relação aos cuidados com a saúde. É o caso do advogado Jorge Armando, de 31, iniciado nas artes da barbearia aos 4 anos de idade. Se comportasse bem, tinha o direito a ganhar duas ou três balas. Era mais travesso do que o irmão gêmeo, hoje capitão da Polícia Militar. “O pai deles fuma, mas nenhum dos dois entrou nessa. Aprenderam comigo”, orgulha-se o barbeiro, que se tornou quase da família.

Simpático, o advogado confessa que chega a permanecer até um mês sem cortar o cabelo, aguardando vagar um horário na concorrida agenda de Dias. “Seu Dias corta meu cabelo até de olho fechado. Já está acostumado. Chego a rir quando ele mostra o espelho para eu conferir atrás. Nem olho”, explica ele, impressionado com a jovialidade do amigo de longa data. Dias e seus clientes formam uma espécie de Clube do Bolinha, onde menina não entra e são revelados os segredos mais cabeludos entre eles. “Sei da vida de todo mundo sem perguntar nada. Eles sentam na cadeira e já começam a falar. Só escuto ”, diz..