Numa gravação em vídeo, Caetano deu uma aula de como usar a contração de preposição e artigo e chamou seus assistentes à responsabilidade. “Levamos uma bronca do professor Caetano! Kkkkk. Prometemos estudar mais português!”, revelaram os integrantes da equipe, sem dar margem a mágoa.
A declaração do autor de Sampa e Odara no mundo virtual repercutiu à exaustão. A grande maioria aprovou o puxão de orelhas em sua produção. “No mínimo, levanta uma discussão sobre a nossa língua.
É do imortal Ferreira Gullar a afirmação de que “a crase não foi feita para humilhar ninguém”. Mas o músico mineiro Pablo Castro apoia a atitude de Caetano, por julgar que corrigir um erro não é demonstrar superioridade, mas sim uma maneira de valorizar a língua e o país. Pablo se lembra de um caso curioso ocorrido no começo do ano, durante o concurso das marchinhas de carnaval de Belo Horizonte, quando sua canção, que ficou em 5º lugar, quase foi mal-interpretada justamente pelo uso da crase. “A letra falava: 'O Carnaval vai tirar do desespero a alegria', sem crase, e o pessoal começou a colocar a crase, achando que era ‘do desespero à alegria’. Tinha um sentido completamente diferente. Olha como um mero detalhe muda tudo.”
Na opinião de Castro, o fato de as pessoas não saberem utilizar a crase não é fruto apenas da desvalorização do ensino, mas também de não terem um contato mais profundo com a língua, seja através da leitura de livros e jornais ou da própria escrita. “Acho que apenas 15% dos alfabetizados sabem utilizá-la, e isso é muito grave. A gente vê esse tipo de erro até em placa de museu. Se está errado, temos que reclamar, igual fez o Caetano.”
Já o cantor e compositor carioca Pedro Luís acredita que há um certo descuido com a língua na internet e, consequentemente, erros acabam acontecendo. “Cria-se uma linguagem cifrada. Procuro usar o português da maneira mais adequada, mesmo no Twitter, no Face, até porque a língua é um elo de permanência de uma cultura.” Com relação à crase, Pedro diz que já teve problemas em textos nas redes sociais e artigos. Ele brinca que, no caso do post no Facebook de Caetano, acabaram transformando Bituca, um substantivo masculino, numa guimba de cigarro.
BOSSA NOVA Para o pesquisador Ricardo Cravo Albin, o erro no uso da crase era muito comum, especificamente, na música popular dos anos 1930 aos 1950. “A partir da Bossa Nova é que começaram a surgir preocupações com a escrita na área, especialmente com a entrada em cena de Vinicius de Moraes, poeta especializado na língua portuguesa”, afirma o pesquisador. Segundo avalia, os erros de português continuam comuns na chamada música kitsch, mais descompromissada com o uso da norma culta. “São erros normais, comuns principalmente no rap”, diz.
De acordo com Cravo Albin, foi a partir da entrada em cena do núcleo essencial da Bossa Nova, que reunia Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto, que passou a existir um zelo maior com a língua na música. “Vinicius, em especial, era uma exímio conhecedor e manejador da língua portuguesa”, afirma. Para ele, Caetano Veloso tem “toda razão” ao cobrar uma escrita aprimorada do português. “Primeiro, porque cuidar da língua é uma obrigação de quem escreve. Depois, porque isso é uma demonstração cultural.”
“Caetano escreve magistralmente, conforme provam não apenas as letras de música de sua autoria, mas, principalmente, os livros que publicou”, diz Ricardo Cravo Albin. O pesquisador avalia que o uso da crase em Bituca, que desatou a ira de Caetano, é produto do automatismo em que vivemos, já que a palavra, embora feminina, na essência é um apelido masculino, no caso, de Milton Nascimento.
Encontro de "as"
A crase ocorre “quando a preposição a encontra o artigo definido a ou a inicial dos pronomes demonstrativos aquele, aquela, aquilo (…). Excluindo-se esse caso, só haverá crase antes de palavra feminina, clara ou subentendida”, ensina a professora Dad Squarisi, que ainda dá a dica para evitar tropeços: substituir a palavra feminina por uma masculina.