Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Jesus, em travessia missionária, passa pela região de Tiro, Sidônia, indo até o mar da Galileia e a região da Decápole, narra o Evangelista Marcos. Nessa travessia missionária, o Mestre realiza o milagre da cura de um surdo-gago. Antes, Jesus havia acolhido o pedido de uma mãe que, com seu modo de se expressar, tocou o coração de Deus. “Por causa de tua palavra, vai: o demônio saiu de tua filha” – disse o Mestre à mulher. Jesus Mestre sublinhou que o pedido foi atendido pela força da palavra, deixando preciosa indicação: a palavra tem propriedades criativas. Não pode, pois, ser usada como instrumento de destruição ou para semear ódios. Na pedagógica narrativa do Evangelista Marcos, outra importante lição sobre a força da palavra. Jesus, já em terras dos crentes, cura um surdo-gago. Jesus tocou os ouvidos e, depois, a língua daquele homem. Olhando para o céu, o Mestre suspirou e disse: “Efatá!” (que quer dizer: Abre-te!). Com o milagre, o surdo-mudo passou a falar corretamente. No horizonte daquele homem e dos discípulos de Jesus está o compromisso de semear palavras capazes de recompor esperanças, gerar respostas e processos novos, nunca permitindo agressões à dignidade humana.
Por isso mesmo, chama a atenção as incongruências nos diferentes modos de se expressar, sinalizando fragilidades, agravadas pelas facilidades tecnológicas. O avanço da técnica pode contribuir para o desenvolvimento integral e facilitar diálogos que levem a entendimentos. Mas, tristemente, constata-se ter razão o desabafo lúcido e instigante do filósofo italiano Umberto Eco, ao sublinhar que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis. Não é uma acusação gratuita. Trata-se de diagnóstico: há grave fragilidade no desempenho da prerrogativa humana de se expressar adequadamente. Manifestações adequadas significam tecer, a partir da linguagem, entendimentos, favorecendo interpretações lúcidas. É, pois, oportunidade para se alcançar metas que promovam os direitos humanos, estimulando a solidariedade cidadã.
Na contramão do falar adequadamente está a condição contemporânea de “surdo-gago”, comprovada pelos equívocos que circulam com mais facilidade a partir das novidades tecnológicas, agravando fragilidades humanas deste tempo. A contaminação e os comprometimentos da linguagem expõem feridas que precisam ser curadas – um processo exigente e demorado, mas urgente. Sem adequado tratamento para essas feridas, a sociedade continuará a amargar muitos prejuízos, vários irreversíveis: muita gente não está tendo forças para continuar a viver – referência ao Setembro Amarelo – com estatísticas espantosas. Os entendimentos políticos, acirrados, vão se desenrolando com comprometimentos que alimentam retrocessos, manipulações e favorecimentos de oligarquias. Consequentemente, são agravadas as desigualdades sociais. O tratamento do meio ambiente está cegado por entendimentos legislativos estreitados e por posicionamentos judiciários mais burocráticos do que realistas – considerando o futuro próximo da humanidade. As consequências são desastrosas, irreversíveis, com uma visão limitada pela lógica do lucro desmedido, distanciado de dinâmicas de um desenvolvimento, efetivamente, sustentável e integral.
Neste planeta adoecido, com muitas crises, urge-se uma linguagem de reconstrução para ancorar avanços e lógicas novas pelo bem da humanidade. A recuperação da linguagem, longe de ser algo abstrato e distante, é necessária. O ser humano precisa admitir, humildemente, a sua condição de “surdo-gago”, tornando-se livre para adequadamente se expressar – isso não significa se achar no direito de espalhar o que está nos trilhos do ódio, da falta de parâmetros e das irracionalidades, sujeitas, inclusive, a penalidades judiciais. Especialmente, o adequado tratamento do dom de se expressar não pode ser confundido com certa miopia: achar, ilusoriamente, que a própria convicção é a correta, que um entendimento estreitado é a verdade, que a odiosidade pode fazer bem. Quem assim age comprova incapacidades e fragilidades encobertas por patologias e perversões psicológicas.
Há um milagre que precisa acontecer para requalificar a linguagem, em todos os níveis e âmbitos. A capacidade para se expressar precisa sempre ser precedida de adequada escuta. Hoje, fala-se muito, escuta-se pouco. No milagre narrado, Jesus toca primeiro o ouvido e, em seguida, a língua do surdo-mudo. Fundamental é escutar mais, para somente depois falar e, assim, não comprometer a força performativa da palavra. Para se expressar deve-se ter responsabilidade, cultivada a partir do exercício da escuta de cada pessoa, prioritariamente dos pobres e vulneráveis, dos clamores da casa comum. Para bem ouvir e falar, é hora de “efatá” – abre-te!