Pré-modernista, "Os Sertões", de Euclides da Cunha (LPM), talvez seja a primeira grande reportagem sobre a iniquidade social no Brasil. Segunda parte do livro, “O homem” descreve o sertanejo como fruto da miscigenação e da adaptação ao meio, ao mesmo tempo em que mostra a gênese do jagunço, que viria a protagonizar a Guerra de Canudos (1896-1897), sob a liderança do messiânico Antônio Conselheiro. Com base em teorias naturalistas falsamente científicas, que o levaram a conclusões racistas, Euclides da Cunha fez uma distinção preconceituosa entre o caboclo sertanejo e os mestiços do litoral do Norte. Segundo ele, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, não teria o “raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”.
Mais de um século depois, porém, as teorias higienistas foram rechaçadas, mas permanece a mesma iniquidade social, principalmente nos grandes centros urbanos, onde o racismo estrutural é um instrumento de manutenção dos mesmos preconceitos e das mesmas desigualdades em relação a Canudos. Por ironia, a primeira favela do Rio de Janeiro ganhou esse nome dos soldados que lutaram no sertão da Bahia. E a violência típica dos jagunços derivou para as nossas cidades, sobretudo nos morros e nas periferias, territórios onde é traduzida pelo banditismo de traficantes e milicianos.
Essa é a face mais perversa das desigualdades no Brasil. Mas existem outras. Há pessoas que não têm condições para comer o mínimo necessário. Muitos passam fome, decorrendo daí quadros de desnutrição e muitos casos de mortalidade infantil. A falta de esgoto sanitário e distribuição de água tratada ainda faz parte do cotidiano de milhões de brasileiros. O acesso às escolas públicas é destinado aos pobres, que arcam com as consequências da má qualidade do ensino, da baixa remuneração e valorização de professores e da precariedade de suas condições materiais.
Os cursos de aperfeiçoamento, bem como as experiências no exterior, são privilégios das elites do país. Raramente os estudantes pobres têm a oportunidade de aprender uma segunda língua. As deficiências de formação repercutem no acesso ao emprego, porque as melhores vagas de trabalho acabam ocupadas pelos que estão mais acima na hierarquia social. A menor remuneração também aprofunda o fosso de segregação social.
Situação semelhante ocorre na saúde, apesar dos esforços do SUS, cuja importância foi demonstrada cabalmente durante a pandemia de COVID-19. A falta de materiais e medicamentos, a baixa remuneração dos profissionais de saúde e a redução progressiva das coberturas vacinais, nos últimos anos, estão facilitando a volta de endemias que haviam sido erradicadas e impactam a taxa de mortalidade, que poderia ser bem menor. Os meios de transporte também fazem a diferença na vida das pessoas, pois o transporte público é caro e muitas vezes precário. Soma-se a isso o déficit habitacional, que obriga as pessoas morarem em habitações precárias. Há 40 mil moradores de rua em São Paulo, a cidade mais rica do país.
Não é à toa, a concentração da renda no Brasil continua sendo uma das mais altas do mundo, segundo o World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais), que integra a Escola de Economia de Paris. A renda média nacional da população adulta, em termos de paridade de poder de compra (PPP, na sigla em inglês), é de 14 mil euros, o equivalente a R$ 43,7 mil, nos cálculos dos autores do estudo. Os 10% mais ricos no Brasil, com renda de 81,9 mil euros (R$ 253,9 mil em PPP), em 2011, representam 58,6% da renda total do país. Em contrapartida, a metade da população brasileira mais pobre só ganha 10% do total da renda nacional. Na prática, isso significa que os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que recebem os 10% mais ricos no Brasil. Na França, essa proporção é de apenas 7 vezes.