Bruno Viveiros Martins
Professor de História da Estácio de Belo Horizonte
Em muitos casos, a coisa mais fascinante em uma rua é o seu próprio nome. Por mais desolada que ela possa ser, seu nome transfigura tudo. Graças a ele, a rua é capaz de evocar antigas memórias perdidas no tempo e no espaço. A magia de uma esquina residiria também na interseção criada a partir do encontro de dois nomes.
Em Belo Horizonte existe uma relação ainda mais íntima entre a topografia urbana e a nomenclatura de suas vias. Percorrendo, no hipercentro, as ruas batizadas com os nomes das nações indígenas, uma ausência é evidenciada. A caminhada mais atenta por ruas como Caetés, Guaicurus, Tupis, Guarani, Tupinambás, Goitacazes, Aimorés, Tamoios, Guajajaras, Timbiras pode mexer com a imaginação do passante não tão apressado. Mas afinal, o que elas querem nos dizer? Tantas placas com nomes esquecidos parecem firmar, em nossas lembranças, as populações originárias segregadas ao longo de tantos capítulos da história desse território que, em determinado momento, passou a ser chamado Brasil.
Muito significativo é também o fato de que algumas construções importantes localizadas no perímetro central da cidade receberam esse mesmo tipo de nomenclatura. Alguns de seus edifícios ganharam nomes que remontam ao vocabulário indígena, como o Acaiaca, inaugurado em 1947 e localizado na esquina formada por Rua dos Tamoios, Avenida Afonso Pena e Rua Espírito Santo. Nos anos seguintes, o Acaiaca foi o mais imponente da cidade. Principal representante do estilo marajoara, em sua fachada destaca-se uma intrigante relação entre a tradição e a modernidade. Na parte superior, duas torres de vidro que à noite chamavam a atenção pelo brilho futurista de suas luzes. Na parte inferior, duas faces indígenas ainda observam o cotidiano da capital. Postadas na extremidade dos ângulos formados pelo encontro da avenida com as duas ruas laterais, elas impressionam pelo tamanho e a estranheza. Como se estivessem ali a propor uma espécie de enigma a ser desvendado por aqueles que se deparam com tais formas.
Além do Edifício Acaiaca, o estilo marajoara também ganha destaque no desenho e nos detalhes da calçada da Praça Raul Soares, localizada exatamente no centro geográfico da cidade. Nesse sentido, essa misteriosa “presença indígena” estaria incrustada simbolicamente no coração da capital mineira. Emaranhadas ao traçado das avenidas diagonais superpostas à malha de ruas ortogonais que recortam os quarteirões na forma triangular, a presença dos povos indígenas habita o imaginário dos belorizontinos. Quanto à nomenclatura das ruas, ela obedece a uma ordenação racionalista, própria à formação positivista de Aarão Reis. Dispostas perpendicularmente, as nações indígenas se entrelaçam aos estados da União, espécie de síntese da nacionalidade brasileira que viria a ser firmada pelo engenho republicano. Síntese um tanto artificial, em vista do modo como os indígenas foram dizimados, ao longo do processo de ocupação do país.
Dessa maneira, a existência indígena a nomear as ruas da cidade ganhou um status de uma dívida que nunca foi paga, contraída com um povo que, ao longo do tempo, foi sistematicamente apagado da civilização brasileira. É certo que não se pode acordar os mortos. Podemos, porém, apaziguar seu sono. Como uma espécie de guardiã totêmica, essa presença insinua a resistência de uma memória frente ao esquecimento, luta tantas vezes travada quantas foram as transformações sofridas pela cidade acostumada a construir o futuro a partir da negação ostensiva do passado.