Leticia Santana Gomes *
Especial para o EM
Já ouvimos ou temos memórias de grandes casas editoriais e de homens editores – Paula Brito, Monteiro Lobato, Erico Verissimo, José Olympio, Ênio Silveira, Jorge Zahar, dentre outros. Certamente você já escutou ou leu algum livro em que constava algum desses nomes, mas e as mulheres editoras, quem e onde estão? Está evidenciada, dessa maneira, o protagonismo masculino no mercado editorial e o silenciamento das mulheres editoras que fazem circular importantes obras no mercado de bens simbólicos. Há uma discrepância que incide ao gênero no campo editorial, em um cenário que, contraditoriamente, é marcado por mulheres. Foi nesse intuito que surgiu a tese de doutorado “Mulheres-editoras-independentes e as edições de si", desenvolvida no Programa de Estudos de Linguagens do Cefet-MG.
No entanto, desde 2015, com a realização da pesquisa “Por uma memória editorial” e da Coleção Edição e Ofício, investiguei os/as editores/as de vanguarda no estado de Minas Gerais. Mulheres precursoras em um cenário editorial independente foram entrevistadas e protagonistas para um acervo sobre profissionais da edição. Chegamos às precursoras Maria Mazarello Rodrigues, fundadora da Mazza Edições, primeira editora de registro de publicações afro-brasileiras e com forte atuação até hoje; Maria Antonieta Cunha, fundadora da primeira editora e livraria Miguilim, pioneira em publicações infantojuvenis; Sônia Junqueira, professora, escritora e editora que atuou em grandes editoras, sobretudo em livros didáticos. Poderíamos dizer de muitas, e hoje, felizmente, se perde de vista a efervescência de mulheres editoras que surgem em diferentes gerações, temáticas, nichos.
A partir desse cenário, houve a urgência de se discutir e escutar essas editoras silenciadas e entender a dinâmica de suas práticas editoriais, que nos levou a outros territórios, como Argentina e França. Para isso, estabelecemos como recorte da nossa pesquisa da tese as mulheres criadoras da própria casa editorial; mentoras do próprio catálogo editorial; e também o nicho específico de publicação – a política progressista.
Nesse recorte, encontramos as mulheres-editoras-independentes: 1) a brasileira Ivana Jinkings, que fundou, em 1995, a Boitempo Editorial (em homenagem ao pai, que havia tido editora de mesmo nome no Pará); com mais de 20 anos de existência, a editora publicou obras de influentes pensadores nacionais e internacionais. Jinkings foi uma das fundadoras da Liga Brasileira de Editores (Libre), reconhecida pela difusão literária marxista e progressista. 2) a argentina Constanza Brunet, poderíamos dizer, é o maior nome de editora progressista no país, com publicações exclusivas de jornalismo investigativo e história política; Brunet, formada em jornalismo e ciências políticas, foi a fundadora da Marea Editorial em 2003. 3) Isabelle Pivert, na França, conhecida como a editora “anarquista” francesa, que também é escritora, fundou a Éditions du Sextant em 2003, com publicações “para compreender o mundo”, ligadas a obras de caráter contestatório e temas como crises (política, econômica, sanitária), histórias, testemunhos de ex-combatentes da resistência da Segunda Guerra Mundial em formato de bolso.
Nesse histórico editorial sobre mulheres editoras nestes três países, observamos o sexismo e uma divisão desigual de trabalho existente, principalmente nos nomes de memórias às casas editoriais. Havia o nome do patriarca nas editoras, mas o ofício editorial era aprendido com as mulheres – herdeiras, viúvas, parceiras, mas acima de tudo, editoras.
“Edição de si”
A pergunta central e latente para a pesquisa que desenvolvemos era questionar se havia uma coincidência entre o que essas mulheres mulheres-editoras-independentes publicavam em seus catálogos editoriais e as projeções que faziam de si, a partir da análise das entrevistas realizadas. O resultado foi encontrar os catálogos editoriais como uma das facetas, uma “edição de si” dessas mulheres-editoras-independentes, que deixam suas projeções identitárias e institucionais que se imbricam. Há uma personificação, muitas vezes voluntária (algumas publicações estão relacionadas a uma formação acadêmica específica, como em ciências políticas, econômicas, por exemplo) e involuntária (são regidas por espaços de pressão mercadológica, mesmo inseridas no contexto independente), mas há uma consonância identitária no que é publicado e seus percursos de vida, muitas vezes indissociável casa editorial da própria vida íntima e privada.
O sintagma “edição de si” acompanha essa incompletude nos diversos sentidos discursivos e, sobretudo, editoriais pelas quais as mulheres-editoras-independentes perpassam, já que não há um catálogo pronto, há tentativas de um percurso e de livros a serem feitos, de edições constantes e inacabadas – de si, da casa editorial, de ambas.
Nessa “personificação” entre projeções, essa “edição de si” é conceito “guarda-chuva” para ancorar um processo que evidencia uma incompletude do ser e da instituição. Descrever e analisar o catálogo como narrativa discursiva é uma das formas de narrar, dessa “edição de si”, como lugar de se fazer significar e de se avaliar. “Editar” é ferramenta de resistência, “editar a si”, “editar o mundo” são potências para reexistir, é possibilitar a extensão da memória, da imaginação, é propor a bibliodiversidade a uma sociedade. Quem ganha, claro, é o leitor, esse que, provavelmente, ao abrir um livro, também observa quem os fez e quem os editou – ou quem foi a editora, tanto física quanto jurídica, que colocou em nossas mãos mais um objeto livro a ser devorado.
* Leticia Santana Gomes é doutora em Estudos de Linguagens do Cefet-MG