Jornal Estado de Minas

Uma lenda gigante

De candidato a boxeador à atuação como goleiro e, mais tarde, treinador de vários clubes entre Minas e Rio de Janeiro (foto: Arquivo EM/D.A Press %u2013 4/9/77)

Ele era filho de alemães. Nasceu em Corumbá, no Mato Grosso. Teria hoje 102 anos. Dorival Knipel ficou conhecido pelo apelido Yustrich pela semelhança com um goleiro famoso do Boca Juniors dos anos 1930 e 1940, Juan Elias Yustrich. Corpulento, começou a carreira esportiva como boxeador, mas permaneceu no ringue por pouco tempo. Acabou indo para o Flamengo, atuando sob as traves. No Rio defendeu também o Vasco e América. Mas foi como treinador que ganhou fama, principalmente no futebol mineiro. Pela maneira turrona de trabalhar, muito exigente, temperamento explosivo e pela altura, 1,90m, era chamado Homão. Hoje se completam 30 anos da morte dele. Consequência de um câncer que o deixou internado por quatro meses no Cardiocentro, em Belo Horizonte.



Treinador polêmico, dirigiu grande times, como Atlético, em 1952, Cruzeiro, Flamengo, Vasco, Corinthians, América (onde estrearia, em 1948), Villa Nova, Siderúrgica, que levou ao título mineiro em 1964, Coritiba, Porto (Portugal), com o qual seria bicampeão (temporadas 1955/56 e 1956/57), América-RJ e Bangu. Como jogador foi tricampeão no Fla (1939/1942/1944).

No fim da década de 1940, tornou-se técnico de futebol, com a fama de disciplinador e durão. Não aceitava, por exemplo, que jogador fumasse ou que tivesse cabelo comprido. Nem mesmo barba. O cabelo tinha de ser cortado baixinho, rente ao couro cabeludo. Não tolerava atrasos ou faltas aos treinos, em que exigia muito dos atletas. O temperamento instável já havia lhe custado a condição de goleiro titular do rubro-negro carioca.

Em 1955, após treinar o Atlético, foi para o Porto. Lá, levou o clube ao bicampeonato nacional, quebrando jejum que vinha de 1940. Deixaria o time em 1958, campeão, mas com o ambiente envenenado exatamente por seu perfil difícil.



De volta ao Brasil, dirigiria Bangu, América-RJ, retornaria o Atlético, comandaria outra vez o Bangu e chegaria ao Siderúrgica, de Sabará, para liderar a equipe no título mineiro de 1964, o último antes da Era Mineirão. Em 1968, novamente no Atlético. Treinou o alvinegro em dezembro daquele ano, quando este representou a Seleção Brasileira, enfrentando a Iugoslávia, no Mineirão. O Galo, trajando amarelo, venceu por 3 a 2, de virada.

Em setembro de 1969, era ele à frente do Atlético no embate emblemático com a Seleção Brasileira comandada por João Saldanha. O Galo vestiu a camisa da Seleção Mineira e venceu por 2 a 1. Os gols foram de Amauri (42 do 1º), Pelé (5 do 2º) e Dario (20 do 2º).

ARMA Começava aí uma rusga com Saldanha. Também com temperamento explosivo, Saldanha resolveu tirar satisfação meses depois. Em 12 de março de 1970, invadiu o CT do Flamengo no Rio, em São Conrado. De arma em punho, procurava Yustrich, então comandante do rubro-negro, que já havia deixado o local. Para muitos, foi uma das razões para a demissão de Saldanha, substituído por Zagallo.



E até deixar os gramados, em 1982, como técnico do Cruzeiro, Yustrich seguiria vivendo como vivera desde o começo da carreira: sob o signo da polêmica.


Conheci um outro Yustrich

Seu Yustrich. Era como a gente o chamava lá na Rua Dante, 249, no Bairro São Lucas, o prédio onde morávamos. Meu vizinho. Ele no 205, eu no 402. Meu pai sempre se referia a ele como Homão. As bolas com as quais a gente jogava pelada, tanto no pátio do prédio como na rua, eram doadas por ele.

Um dia, chegou mais cedo do treino. Eu tinha uns 12 anos. Reuniu os meninos e disse: “Vou levar vocês pra jogar com time que tenho em Vespasiano. Vão disputar o campeonato da região. Precisam treinar.” Ficamos empolgados: eu, Caqui, Chiquinho, Pelau, Darlan, Miguel (goleiro), Zezé, Luizinho, os irmãos Sérgio e Jorginho (Mal-acabado) Abjaldi, Popola, Nilo, Vanderlei. Íamos jogar num campão!

E lá fomos nós em dois carros para o sítio do Yustrich. Eu no carro dele, um Impala, azul, bonito, com metade do grupo. A outra metade foi num Chevrolet 47, Fleetmaster, com o motorista dele, o Gasolina.

Chegamos, e o outro time já estava em campo. O Yustrich nos deu o uniforme. Fui logo pegando a 5. Gostava de jogar no meio-campo. Mas ele me chama e pergunta: “O que você está fazendo com a 5? Não viu que é o maior? Você é o beque.” “Tá bom”, respondo, mas aviso que não visto a 2, pois dá azar.



“Vem cá, vou te explicar algumas coisas”, diz ele. “Tá vendo o 9? Assim que pegar na bola, dá nele. Todo centroavante é medroso. Tá vendo o 10? Dá nele também, porque se for bom, vai armar lá atrás e não cria problema pra nossa defesa”. E tinha mais: “Vou te dizer e não vou repetir. Quem bate primeiro é quem manda.” O placar, não me lembro, foi apertado. Caqui, nosso craque. Fez um gol.

Na volta, chegando ao prédio, ele chamou o Chico, o zelador, e mandou buscar umas caixas que tinha em casa. Eram salgados de todos os tipos. E vieram também refrigerantes. Uma farra.

O nosso Yustrich, lá da Rua Dante, era diferente do técnico com fama de mau. Meu prédio era famoso no bairro por causa da festa junina. E Yustrich bancava tudo: barraquinhas, comida, bebida. Numa delas, mandou fazer umas bombas, tamanho “garrafão”. Riscou e colocou sob latões de lixo. Aquilo explodiu, virou foguete. Na hora, fez sinal para um caminhão na esquina. Quatro homens desembarcaram latões novos. Ele fazia questão disso. (ID)


Sob o signo da polêmica

Cobertor ao sol

Artilheiro do Guaxupé no Mineiro de 1975, o centroavante Marcão chegou ao América. No ano seguinte, Yustrich, em sua quarta passagem pelo clube (seriam cinco), se preocupava com o atleta, que admirava. “Ganha peso com facilidade. Tenho de resolver isso e já sei o que fazer.” Encomendou quatro cobertores. Era verão. Terminados os treinos, esticava um cobertor atrás de um dos gols do CT Vale Verde, mandava Marcão se deitar, colocava três cobertores por cima e o deixava no sol por pelo menos uma hora. Passou a controlar a alimentação do jogador, que emagreceu e voltou a marcar gols.




Fogo em tudo

Yustrich foi contratado pelo Siderúrgica, de Sabará, em 1964. Quis logo conhecer a concentração. Não gostou do que viu. Camas velhas, assim como os colchões. Levou tudo pessoalmente para fora da casa e, no quintal, ateou fogo. Enquanto as chamas consumiam o material, foi até uma loja na praça principal, comprou beliches e colchões novos. Mandou cobrar da direção. Ninguém reclamou. O Siderúrgica acabou campeão mineiro, seu segundo título estadual.


De braço quebrado

Na final do Mineiro de 1964, América x Siderúrgica, na Alameda, o time de Sabará começou quente. Fez 1 a 0 com Ernani. Noventa e Aldeir ampliaram ainda no primeiro tempo. No início da segunda etapa, falta em Noventa. Atendido fora do campo, o médico constatou fratura. Yustrich dá a ordem: “Coloca no lugar e manda de volta.” Noventa tenta questionar. “Já mandei. Volta lá e joga”. Ao fim, 3 a 1 para o time de Sabará, campeão.


Puxão de orelha

Zé Ernesto era goleiro do América promovido por Yustrich ao profissional. Morava na mesma rua do treinador, no São Lucas. Um dia, no ponto de ônibus, acendeu um cigarro. Yustrich, da janela do apartamento, viu. Foi, tomou o cigarro, o agarrou pela orelha e o arrastou até sua casa. “Dona Deusdedith, esse sem-vergonha estava fumando. Hoje ele não sai, não treina. Mas amanhã quero que chegue às 7h. Vou cheirar sua boca e se estiver fedendo a cigarro, vai se ver comigo”.




Rodo na mão

Quando foi treinar o Porto, Yustrich decidiu levar Jaburu, atacante do América. O atleta tinha problemas com a bebida. A mulher do jogador, ao chegar ao apartamento em que iriam morar, procurou Yustrich e disse que tinha medo de ser agredida. Yustrich voltou com um rodo. Entregou a ela e disse, diante de Jaburu: “Você vai deixar esse rodo sempre ao lado da cama. Se ele te bater, você pega o rodo e bate no teto. Moro aqui em cima. Desço aqui e acabo com a raça dele”.



Entre a crítica e o respeito


''O Yustrich tinha a mania de colocar a gente para dividir bolas. Aquilo era perigoso. E tinha outras truculências nos treinos, como colocar um para carregar o outro nas costas o campo inteiro. Eram treinos arcaicos. Mandava a gente chegar junto e pegar o adversário. Eu não concordava de jeito nenhum. Mas na parte tática era impressionante”

Nelinho, ex-Cruzeiro e Atlético



''A gente tinha ido jogar em Porto Alegre, contra o Inter. Na volta, paramos em São Paulo. Chovia muito. Tivemos de pernoitar lá. No dia seguinte, pegamos o avião cedo. Ao chegar à Pampulha, o Yustrich anunciou que iríamos direto para treinar. Minha mulher estava em trabalho de parto, mas não adiantou. Quando cheguei ao hospital, a Márcia tinha tido um casal de gêmeos: Marcos Vinícios e Maria Carolina. De repente, batem na porta. Era o Yustrich, com a mulher dele e um buquê de flores”

Amauri Horta, ex-Atlético


''Ele me levava pra casa dele, me colocava assentado na sala e ficava me dando conselhos. Eu era tido como ruim de bola. E não convivia com os demais jogadores. Aquilo incomodava o Yustrich, que resolveu me ajudar. Ele me deu força. Nas conversas, havia me dito: 'Não espero nada de você no que diz respeito a controle de bola. Vou usar a sua velocidade e sua impulsão, que é maravilhosa. E vou treinar sua perna direita. Você vai se tornar artilheiro'”.

Dario, ex-Atlético

0s títulos
Mineiro
• 1948 (América)
• 1952 e 1953 (Atlético)
•1964 (Siderúrgica)

Portugal
•Bicampeão pelo Porto (1955 e 1956)

Taça Guanabara
•Flamengo (1970)