“De repente, eu fiquei com a roupa do corpo, sem minha casa, sem minha mulher, com desafio de, aos 64 anos, construir minha vida. Como se estivesse renascendo nos bra�os dos meus amigos. Nu, com 64 anos, eles me deram roupas, me acolheram em suas casas. Vou construir meu caminho. N�o sei como, mas vou. 'Eis me aqui, Senhor'. Sa� de casa uma hora antes, ent�o, estou aqui, dispon�vel. O que tenho que fazer? Qual meu compromisso nesta vida? Eu tenho um compromisso, eu preciso descobrir ainda, pois intuitivamente n�o est� claro.
Eu preciso me dedicar a coisas fundamentais, n�o quero viver uma vida como escravo do trabalho, construir coisas que n�o t�m valor. Minha casa tinha em torno de 18.000m² de �rea total. Jardins com brom�lias, orqu�deas, ambientes com cascatas, com carpas, viveiro para marrecos, para araras, todo em blindex. Um galinheiro de alvenaria, com desenhos de S�o Francisco de Assis.
A Sirlei era muito caprichosa, gostava demais dos animais, tinha uma lhasa de 8 anos, que era uma integrante da fam�lia, e um rottweiler, que ficava no quintal. Tinha seis pav�es soltos, um casal de fais�o dourado, um prateado, 12 angolas, tudo solto. Brom�lias, buganv�lias, orqu�deas. Minha esposa passava o fim de semana com tesoura na m�o, eu carregando carrinho de areia de solo org�nico.
Caix�o n�o tem gaveta, a gente n�o leva nada que tem aqui. O que � isso? Est� tudo errado. Tem que promover solidariedade, amor. � muito piegas, mas n�o tem outra alternativa n�o. Isso tudo � uma bobagem cultural. Somos fruto dessa forma��o que nos obriga a trabalhar, trabalhar, ter sucesso, ser reconhecido. Vaidade, um pecado capital, mais um.
Tenho forma��o em engenharia geol�gica. H� 28 anos, trabalho com minera��o aqui em Brumadinho. Quando fui convidado, a casa que me foi oferecida ficava �s margens de uma lagoa. Em 1995, mudei para a casa em que morei at� uns dias atr�s. At� o momento que ela (Sirlei) surgiu na minha vida (em 2006), eu plantava amendoim, feij�o, mandioca. Ela trouxe uma vis�o mais de jardim.
Sirlei tinha, fundamentalmente, por refer�ncia materna, um grande amor pelas pessoas. Era de uma sensibilidade fraterna muito particular. E fazia de cora��o, era uma coisa que n�o tinha obriga��o, n�o fazia como um dever. Ela fazia porque tinha que fazer. Ela encontrava pessoas com dificuldade, ajudava. Era apaixonada com os animais. N�s n�o tivemos filhos, ela se dedicava �s crian�as da comunidade, do abrigo do munic�pio.
Era uma pessoa que tinha um perfil bastante humanit�rio. Eu tenho ouvido muita conversa na m�dia sobre ser inimiga da minera��o. Isso � mentira. Nunca teve postura de p�r fogo em porta de minera��o, p�r fogo em �nibus, protestos sem fundamento. Era inteligente, sabia conversar, negociar. Tanto que, quando negociava com a empresa, era com l�gica, buscando parceria, n�o confronto.
(No dia em que foi encontrada) ela estava com a cachorra no colo. A cachorra n�o sa�a do lado dela. Ela sentava, a cachorra sentava. Ela levantava, a cachorra levantava. Era uma comunh�o fant�stica. Ela certamente abra�ou a cachorra e fugiu para um ponto que provavelmente n�o teve tempo de fuga.
Fez tanta coisa que cumpriu o dever dela nesta terra. Sa�a �s 7h e chegava �s 23h. Eu comentava com ela: 'Tem 13 anos que estou te esperando, eu fico te esperando'. Falei para ela: 'Te pago em dobro para voc� ficar aqui'. Ela nem me deu resposta. Fazia porque queria, n�o pelo sal�rio. Era por amor, voca��o. Aquela coisa que vem de dentro e n�o tem como segurar.
Espero que ela esteja com a m�ezinha dela, que ela tanto queria encontrar. Eu s� agrade�o por ter tido ela em minha vida. E por ter me apaixonado por ela.