Brasil precisa discutir garantias para que meninas não sejam violentadas
Ao impor a continuidade forçada da gravidez resultante de estupro, o Estado abandona o papel de protetor e passa a ser cúmplice da violência
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Recebi um artigo da Cynthia Betti, CEO da Plan International Brasil, sobre o PL 2.524/2024, que proíbe o aborto após a 22ª semana de gestação, mesmo em casos permitidos por lei. O assunto continua em alta, após aprovação do PDL 3/2025, na última quarta-feira (5/11), que tenta suspender a norma que garante atendimento humanizado a meninas vítimas de violência sexual e o acesso ao aborto legal. Achei pertinente e importante, publico a seguir o artigo de Cynthia quase na íntegra:
“Em uma sessão que durou menos de cinco minutos e contou com a presença de poucos parlamentares, a Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou o Projeto de Lei 2.524/2024, que proíbe o aborto após a 22ª semana de gestação, mesmo nos casos atualmente permitidos por lei, como, por exemplo, estupro, risco de vida da gestante ou anencefalia. A cena sintetiza, em muitos sentidos, o que esse projeto representa: um retrocesso silencioso, que avança sem debate público, sem escuta e sem empatia pelas meninas e mulheres que mais precisam de proteção.
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O PL 2.524 não é apenas uma mudança legal, é uma negação de direitos básicos garantidos pela Constituição, pelos tratados internacionais e por compromissos éticos e sociais. Ao impor a continuidade forçada de uma gravidez resultante de estupro, o Estado abandona o papel de protetor e passa a ser cúmplice da violência. Na prática, o projeto força meninas estupradas a se tornarem mães, ignorando completamente o trauma, os impactos físicos e psicológicos e a realidade de um sistema que já falha em acolhê-las.
Esses impactos são particularmente graves no Brasil. Segundo dados do Sinasc/Data SUS, a cada hora, 44 adolescentes dão à luz no país, e cinco delas têm menos de 15 anos. Toda relação sexual com crianças e adolescentes com menos 14 anos é considerada estupro de vulnerável e, ainda assim, apenas uma fração mínima dessas meninas consegue acessar o aborto legal garantido por lei. A maioria vive em contextos de vulnerabilidade, medo e desinformação, o que reforça a distância entre o direito formal e o acesso real aos serviços de saúde e proteção.
Além disso, o Brasil ainda enfrenta índices preocupantes de mortalidade materna. Segundo dados preliminares de 2024, a taxa foi de 50,57 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos, número que permanece acima da meta estabelecida pelo país para 2030, de 30 mortes por 100 mil nascimentos.
Mesmo com avanços recentes, o dado revela que o país segue falhando em garantir condições seguras e equitativas de gestação e parto, especialmente entre as mulheres mais jovens e vulneráveis.
O discurso da 'proteção ao nascituro' esconde uma contradição profunda. O mesmo país que agora discute a 'inviolabilidade do direito ao nascimento' tem um sistema de saúde que ainda não assegura pré-natal adequado, uma rede de proteção que falha em identificar meninas vítimas de violência sexual e uma estrutura que não garante que essas crianças tenham direito a viver com dignidade. Proteger a vida não pode significar condenar meninas a perder a própria infância.
A pressa em aprovar um texto tão sensível, sem diálogo com a sociedade civil e sem escuta das vozes femininas no Parlamento, revela o quanto o país ainda resiste a enxergar meninas e mulheres como sujeitos de direitos.
O Senado ainda tem a chance de corrigir esse curso. O PL 2.524 seguirá para as comissões de Assuntos Sociais e de Constituição e Justiça. Mais do que discutir semanas de gestação, o Brasil precisa discutir o tempo que ainda falta para garantir que nenhuma menina seja violentada, silenciada ou forçada a ser mãe.”
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
