Carlos Starling
Carlos Starling
SAÚDE em evidência

O caçula

O pequeno imperador de um reino cujas regras já foram testadas e aperfeiçoadas nos seus irmãos – as cobaias humanas que vieram antes de você

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Meu compadre queixou-se das estripulias do seu irmão mais novo: “O caçula”, definiu ele. Aí, pisou no meu calo. Sou caçula também. Temporão! O temporão é um caçula plus. Quase uma aberração da natureza. Quatorze anos mais novo que a Marta, minha irmã do meio.


Nasci quando meus pais já não esperavam mais surpresas da vida. Minha mãe pensou que fosse menopausa, meu pai achou que fosse indigestão do bacalhau do Natal. Era eu, chegando sem aviso prévio, como aquele parente que aparece para o almoço de domingo sem ser convidado.


Ser o caçula é como ganhar na loteria um prêmio que você não sabia que tinha bilhete. De repente, você é o rei da casa. O pequeno imperador de um reino cujas regras já foram testadas e aperfeiçoadas nos seus irmãos – as cobaias humanas que vieram antes de você.


Meus irmãos costumavam dizer que cresceram com o manual de instruções da primeira edição, cheio de erros de digitação e capítulos faltando. Eu, por outro lado, ganhei a versão premium, revisada e ampliada, com direito a prefácio do Papa e posfácio do Pedro Bial.


Quando meu irmão mais velho quis uma bicicleta, meus pais deram uma palestra sobre os perigos das ruas e a importância de andar de ônibus. Quando eu pedi, eles não só compraram, como também incluíram todos os opcionais disponíveis, "para estimular meus reflexos e coordenação motora". A ciência ciclística evoluiu rapidamente naqueles anos entre nós, aparentemente.


Minha irmã do meio ainda se lembra do dia em que voltou para casa depois do toque de recolher, às 22h05. Foi colocada de castigo por duas semanas. Eu? Cheguei às três da manhã uma vez, e meu pai, de pijama na porta, apenas perguntou se eu tinha jantado, oferecendo-se para esquentar a comida.


"É que com você já aprendemos que não adianta ser rígido demais", explicou minha mãe, enquanto me servia uma porção extra de sobremesa. "Precisamos preservar sua individualidade." Meus irmãos, sentados à mesa com suas porções regulamentares, apenas reviravam os olhos em sincronia perfeita.


Os álbuns de família também contam essa história. Meu irmão mais velho tem exatamente doze fotos de infância, todas em poses oficiais, como se estivesse concorrendo a um cargo político. Minha irmã tem um pouco mais, talvez umas cinquenta. Eu? Tenho aproximadamente 1552 fotos documentando cada espirro, sorriso e cocô que produzi nos primeiros anos de vida.


A memória digital da família é 90% dedicada às minhas façanhas medíocres, como se eu fosse o primeiro humano a realizar o feito extraordinário de aprender a andar sem cair de cara no chão.


Porém, ser o caçula não é apenas colher os frutos doces do jardim familiar. Há um preço silencioso que pagamos, uma taxa invisível cobrada pelo universo para equilibrar tantos privilégios.


Somos os últimos a chegar e, por isso mesmo, destinados a sermos os últimos a partir. Carregamos o fardo de ver a família diminuir, como velas que se apagam uma a uma em um bolo de aniversário abandonado.


Lembro-me do dia em que meu pai, já com os cabelos completamente brancos, me chamou para uma conversa séria. Pensei que seria algum conselho profundo sobre a vida, talvez o segredo da felicidade que ele guardara para compartilhar apenas comigo, o filho da maturidade.


"Filho", ele disse com a voz embargada: "Quando eu for embora, não deixe sua mãe comprar aquele caixão caríssimo de funerária de rico. É um assalto! O da funerária aqui do bairro é igualzinho e custa metade do preço”.


E assim, sem aviso prévio, fui promovido a "Diretor de Despedidas Familiares". Um cargo para o qual não me candidatei, mas que recebi por direito de nascença tardia. Enquanto meus irmãos puderam compartilhar o peso das decisões difíceis, a mim coube ser o especialista solitário em caixões, flores e música para velório. Além, claro, das melhores marcas de lenços para enxugar lágrimas.


Quando meu irmão mais velho nos deixou, foi a mim que todos olharam na hora de escolher a música para o funeral. Como se, por ter nascido por último, eu tivesse recebido algum dom especial para selecionar trilhas sonoras para momentos de dor.


"Ele gostava de Beethoven ou Mozart?", perguntei à Neurene, a viúva. "Na verdade, ele adorava ‘Menino da Porteira’", ela respondeu.


E, assim, meu irmão partiu ao som de "Menino da Porteira", enquanto eu tentava explicar à família que, sim, era exatamente o que ele gostaria, e não, não era uma falta de respeito. Só não teve o berrante, que ele mesmo tocava no final da música. Faltava-lhe ar naquele dia fatídico. Foi nesse momento que entendi: ser o caçula é ser o guardião final das memórias familiares.


Agora, com mais de 60 anos, sou o penúltimo dos moicanos da minha tribo familiar. Carrego as histórias dos que vieram antes. Sou o museu de uma família que já não existe na mesma configuração.


Às vezes, quando estou no consultório atendendo algum paciente, me pego pensando em como meu pai lidaria com aquele caso, ou que piada minha mãe faria para descontrair o ambiente, ou que conselho prático meu irmão daria.


Ser o caçula é um privilégio que se transforma em responsabilidade. É ser mimado na infância para ser forte na velhice. Mas se pudesse escolher, faria tudo novamente. Chegaria atrasado mais uma vez para essa família imperfeita e maravilhosa, apenas para ter o privilégio de ser aquele que guarda suas histórias até o fim.


Porque, afinal, alguém precisa ficar para contar a história dos que partiram. E quem melhor para isso do que aquele que sempre foi o ouvinte, observador e o último a chegar à festa da vida?


Meu compadre, paciência com seu caçula. Provavelmente, ele escolherá suas últimas flores e músicas.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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