
A arte no combate ao negacionismo
Enquanto a ciência oferece o mapa preciso da realidade, a arte dá a bússola emocional para navegá-la
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Maria Helena Andrés, uma das maiores artistas plásticas do país, completou 103 anos com uma exposição de suas últimas obras. Para receber as centenas de pessoas que compareceram à sua festa/exposição, ela usou máscara e não a retirou nem para soprar as velas. Certa vez, eu a atendi em meu consultório. Apresentava-se com um quadro respiratório gripal. A primeira coisa que me disse foi: “Vamos usar nossas máscaras?”. Imediatamente, coloquei a minha e seguimos com a consulta. Era a sensibilidade da arte nos protegendo. Em minha profissão, na qual ciência e vida travam batalhas diárias, observo como verdades sólidas para Vó Helena podem ser fluidas para outros.
O negacionismo é um vírus que infecta a mente até mesmo de muitos profissionais de saúde. Resiste aos antibióticos da razão e fortalece-se na ausência da vacina do conhecimento. Em tempos em que informações circulam com a velocidade de uma septicemia, a arte surge como tratamento complementar, penetrando barreiras que dados científicos, sozinhos, não alcançam.
Quando pacientes rejeitam tratamentos comprovados ou estratégias de prevenção, por teorias conspiratórias, não é apenas com estatísticas que os alcançaremos. É preciso tocar corações, despertar empatia, visualizar o invisível. A arte torna-se nossa aliada: a pintura que retrata o sofrimento de uma epidemia, o filme que documenta a luta contra doenças, a música que celebra a vitória da medicina - manifestações artísticas são bisturis delicados que abrem mentes fechadas pelo negacionismo.
A arte sempre testemunhou negações humanas. Nas catacumbas romanas, os primeiros cristãos retratavam a negação de Pedro, simbolizando como até os fiéis podem temer verdades incômodas. Durante a Peste Negra, enquanto autoridades minimizavam a gravidade, Bruegel retratava a dança macabra da morte, documentando a realidade negada.
Durante o Holocausto, enquanto o mundo fechava os olhos, Felix Nussbaum criava obras que documentavam o horror em tempo real. Seu "Autorretrato com Passaporte Judeu" é testemunho contra o negacionismo que se formava mesmo durante o genocídio. Hoje, Gaza chega até nós em tempo real pelos telejornais. Ainda assim, o horror acontece.
No século 20, a arte respondeu ao negacionismo do HIV/Aids, quando governos viravam as costas aos infectados. O movimento “Act Up”, em 1987, utilizou design, performances e instalações para forçar o mundo a enxergar uma epidemia ignorada. O triângulo rosa com "Silence = Death" tornou-se símbolo de como a arte grita verdades silenciadas.
Na pandemia da COVID-19, enquanto teorias conspiratórias se espalhavam como o vírus, artistas responderam com murais, canções e memes educativos que explicavam conceitos complexos, alcançando quem jamais leria artigos científicos.
A visualização de dados é outra ferramenta poderosa. Durante a pandemia, infográficos artísticos ajudaram a população a compreender a importância do distanciamento social e da vacinação.
Humor e sátira são bisturis afiados contra o negacionismo. Charges, memes e vídeos desmontam teorias conspiratórias expondo seu absurdo. Rindo do negacionismo, tiramos seu poder de intimidação. Nessa especialidade, Lor meu amigo e parceiro em muitas crônicas, deu um verdadeiro espetáculo durante a recente pandemia com suas charges geniais.
A música carrega mensagens que ultrapassam barreiras intelectuais. Canções sobre vacinação alcançam públicos que jamais leriam artigos médicos. Artes performáticas oferecem experiências imersivas de realidades ignoradas. Peças sobre epidemias ou instalações que reproduzem ambientes hospitalares permitem que pessoas saudáveis experimentem realidades que prefeririam negar.
A literatura nos permite habitar outras mentes. Romances como "Ensaio sobre a cegueira", de Saramago, ou "A peste", de Camus, convidam leitores a questionar certezas, cultivando a dúvida saudável que é antídoto para o negacionismo dogmático.
A prevenção do negacionismo começa antes das crises. Precisamos vacinar mentes contra a desinformação desde cedo, e a arte é fundamental nesse processo educativo. Nas escolas, o ensino de ciências integrado às artes cria conexões neurais profundas. Quando crianças desenham o sistema imunológico, compõem músicas sobre vacinas ou encenam peças sobre cientistas, desenvolvem não apenas conhecimento, mas afeto pelo saber científico. Ainda como estudante de medicina, escrevi uma peça de teatro infantil chamada “As lombrigas e o menino”. Quase morri de emoção ao assisti-la encenada pelas próprias crianças nas escolas.
Museus de ciência com instalações artísticas interativas transformam conceitos abstratos em experiências concretas. Um visitante que "viaja" pelo corpo humano numa exposição imersiva compreende visceralmente o funcionamento das vacinas, tornando-se menos propenso a negar sua eficácia.
A arte nos ensina algo fundamental para combater o negacionismo: habitar a dúvida sem medo. A ciência avança pelo questionamento constante, mas o negacionismo alimenta-se de certezas absolutas. A arte ensina a navegar no incerto, questionar com respeito, duvidar com método.
A arte não substitui a ciência no combate ao negacionismo, mas a complementa. Enquanto a ciência oferece o mapa preciso da realidade, a arte dá a bússola emocional para navegá-la. Juntas, formam o tratamento mais eficaz contra a epidemia da negação. Essa é a maravilha da frase da Maria Helena Andrés, a Vó que ganhei quando me casei com a Joana. Certamente, a sua longevidade é fruto de sua lucidez e sensibilidade. Parabéns, você venceu o tempo da maioria dos mortais e o negacionismo: “Vamos usar as nossas máscaras?!”.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.