
A síndrome do golpe infinito
Esta é uma crônica sobre a democracia brasileira na terapia intensiva
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Como médico, aprendi que certas patologias se manifestam de forma crônica, resistindo teimosamente a tratamentos de ponta. No Brasil de 2025, observo, com fascínio clínico-infectológico, uma síndrome peculiar: a tentativa de golpe que simplesmente se recusa a passar, como aqueles pacientes que insistem em não seguir a prescrição médica e retornam sempre com as mesmas queixas.
Nessa primeira semana de setembro, o Supremo Tribunal Federal transformou-se no maior hospital judiciário-psiquiátrico do país, onde oito ilustres pacientes se submetem finalmente ao diagnóstico e ao tratamento definitivos. Um ex-presidente e seus companheiros de enfermaria aguardam o veredicto sobre uma enfermidade que contaminou o organismo democrático brasileiro por anos: a tentativa de golpe de estado que começou em 2022 e ecoa até hoje como um tumor irressecável.
Mas o que mais me comove, como observador da natureza humana, é o espetáculo que se desenrola nos corredores políticos paralelos. Enquanto o paciente principal agoniza na mesa de cirurgia, uma verdadeira procissão de agentes funerários já se posiciona estrategicamente na antessala, medindo discretamente o defunto para confeccionar o caixão sob medida e negociar os serviços post-mortem.
O governador de São Paulo assumiu o papel de diretor da funerária com veemência empresarial impressionante. O homem que até então “descartava categoricamente” uma candidatura presidencial agora “admite a possibilidade” e consola a viúva com a discrição de um empresário funerário experiente, que sussurra condolências enquanto apresenta o orçamento. Pesquisas o colocam bem posicionado em cenários eleitorais para 2026 — números que ele examina com o cuidado de quem confere a apólice de seguro de vida do moribundo.
A ironia da situação é deliciosa para quem aprecia os paradoxos da vida política. Enquanto no STF se desenrola o julgamento da tentativa golpista, no Congresso Nacional fervilha uma movimentação paralela que cheira a enfermaria clandestina: a articulação para aprovar uma anistia “ampla, geral e irrestrita” aos acusados. É como se, enquanto o médico examina o tumor, outros colegas já preparam uma receita de alta hospitalar antecipada. Trata-se de uma ressuscitação pré-mortem, coisa jamais vista.
Mas a patologia ganhou contornos internacionais quando um dos filhos do paciente fugiu para terras distantes em busca de tratamento alternativo. Eduardo Bolsonaro, aquele deputado que pediu licença médica por “perseguição política”, instalou-se nos Estados Unidos como uma espécie de lobista da própria enfermidade familiar. O mais fascinante é que Eduardo retirou o verde e amarelo e abraçou a bandeira americana, conseguindo convencer o presidente Trump a aplicar uma sobretaxa de 50% nos produtos brasileiros, transformando questões judiciais internas em efeito colateral com risco epidêmico e de falência de múltiplos órgãos. É como aquele parente ausente(figura que conhecemos bem nos hospitais) que no desespero contrata um médico estrangeiro para pressionar o hospital brasileiro a interromper o tratamento do paciente.
Tarcísio não está sozinho nesse negócio macabro. Uma verdadeira corporação de agentes funerários se organizou para disputar o espólio político: Romeu Zema, Ronaldo Caiado, Ratinho Júnior e Eduardo Leite. Em pelo menos 13 eventos nacionais este ano, esses senhores se reuniram como representantes comerciais de diferentes funerárias, cada um apresentando seus pacotes de serviços para o funeral do líder supremo.
O mais hilário é que os próprios filhos do “moribundo” político perceberam o movimento e reagiram com a fúria de herdeiros, descobrindo abutres sobrevoando a propriedade da família. Carlos Bolsonaro explodiu nas redes sociais, chamando os governadores de “ratos” (um, de fato era um ratinho, mas júnior), “canalhas” e “oportunistas”. “Querem apenas herdar o espólio do papai, se encostando nele de forma vergonhosa e patética”, gritou o vereador, como um parente indignado ao descobrir que as funerárias já estavam negociando o velório antes mesmo do atestado de óbito.
O governo americano intensificou as pressões, cancelando vistos de ministros do Supremo e impondo sanções financeiras, como se fossem colecionadores de luto contratando máfia internacional para intimidar os médicos legistas. Uma frota naval ameaça nossos vizinhos mal comportados, mas não custa nada mudar de rumo e descer Atlântico abaixo. Esse é o prognóstico mais sombrio do golpismo crônico.
Analistas experientes em autópsias políticas diagnosticam a situação com precisão: “A direita prefere Tarcísio para 2026, e a anistia é puro jogo de cena”. É o dilema perfeito dos agentes funerários: precisam do morto para faturar, mas preferem que ele não ressuscite para não complicar os negócios.
A síndrome do golpe infinito revelou-se mais complexa do que qualquer manual médico poderia prever: ela não apenas resiste ao tratamento interno, como desenvolveu metástases internacionais e uma indústria funerária especializada em lucrar com sua própria morte.
Nesta terça-feira, o Brasil vive um momento único: um julgamento histórico no Supremo, uma articulação parlamentar para anular seus efeitos, um filho pródigo tramando em terras estrangeiras, e agentes funerários disputando comissões sobre um defunto que ainda respira. A democracia brasileira, paciente resiliente, aprende a conviver simultaneamente com golpistas crônicos e oportunistas que faturam com a desgraça alheia.
Enquanto o país agoniza em insensatez e radicalismo doentio, seguimos em observação clínica intensiva.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.