Eleonora Cruz Santos
Eleonora Cruz Santos
Economista, com mestrado em Demografia, doutorado em Administração e pós-doutorado em Economia, trabalha como consultora para organismos internacionais, atuando nas áreas sociais, de mercado de trabalho, migração e desenvolvimento humano; também leciona p
ECONOMÊS EM BOM PORTUGUÊS

O cerceamento à educação e à cultura assombra o mundo

A vida exige vigília constante. E é pela educação e pela cultura que essa vigília se faz condição necessária

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O jornal Le Monde publicou, no mês passado, um artigo em que mostra o cerceamento à liberdade do pensamento científico nas universidades, em todo o mundo. Além de exemplos recentes de manifestações de cientistas renomados aos embargos sofridos pela ciência e em prol da sociedade e da vida, o artigo cita o resultado do Índice da Liberdade Acadêmica (ILA), fruto de admirável trabalho de quatro instituições acadêmicas e de pesquisa.


Conceitualmente, o ILA foi construído com base no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1966 e, reforçado, em 2020, pela Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, ao incluir “(i) a proteção aos pesquisadores contra influência indevida no seu julgamento independente e (ii) a liberdade deles poderem ingressar ou se retirar de projetos que não mais se alinham eticamente”.


O ILA foi criado em 2017 e é liderado por uma equipe germânico-sueca que coordena o trabalho de cerca de 2.300 especialistas responsáveis por analisar 179 países, em cinco parâmetros predeterminados:

 

(1) liberdade de investigação e de ensino;

(2) liberdade de intercâmbio e de difusão universitários;

(3) liberdade de expressão acadêmica e cultural;

(4) autonomia institucional das universidades; e (5) integridade dos campus.

 


Não é minha intenção detalhar os resultados do último relatório do ILA, mas destacar o retrocesso, em 50 anos, dos resultados da liberdade acadêmica: os resultados de 2023 são muito similares ao de 1973, em que somente 39,5% e 35,2%, respectivamente, dos 179 países tinham completa ou elevada liberdade acadêmica. No entanto, o mundo viveu sua expansão nos anos intermediários e o auge se deu em 2006, ano em que 60,6% dos países tinham total ou elevada liberdade.


O artigo do Le Monde intitulado “A liberdade acadêmica regride pelo mundo”, em tradução livre, entrevista a professora da universidade alemã Friedrich-Alexander e especialista em direitos humanos, Katrin Kinzelbach, líder do projeto ILA. Destaco três aspectos de governança, ética e garantia da liberdade intelectual levantados por Kinzelbach ao Le Monde:


• Embora haja indícios de uma relação direta entre maior liberdade e maior excelência acadêmica, em 2022, a China quebrou esse paradigma ao ultrapassar os Estados Unidos e se tornar o primeiro país colaborador para revistas de ciências naturais de alta qualidade, de acordo com o Índice da revista Nature. Ainda não há indícios claros sobre efeitos da ingerência política na produção acadêmica na China – esse país é um contra-exemplo.


• O progresso científico sem autorregulação independente e desprovido de procedimentos éticos sólidos de investigação pode tornar-se perigoso, especialmente quando o progresso técnico e as questões éticas colidem, como no caso da engenharia genética ou do recolhimento de dados sensíveis.


• Na era das fake news, da erosão democrática e da polarização das sociedades, os acadêmicos universitários não devem descansar sobre seus louros se quiserem proteger o seu próprio ambiente de trabalho, serem capazes de completar suas ideias de pesquisa e continuarem a treinar a próxima geração de acadêmicos.


Ainda sobre a baixíssima ou ausente liberdade acadêmica, o ILA indica que entre os grandes países no topo da lista estão China, Rússia e Índia. O Brasil encontra-se entre os países cujo ILA melhorou no último ano (2023), o que se justifica, sobretudo, pelo fim da política de corte de recursos, fortemente vivenciada na academia, entre os anos de 2019 a 2022, mas cujos efeitos ainda são fortemente sentidos.


Na semana passada, os professores da Universidade Federal de Minas (UFMG) decidiram entrar em greve; outras universidades federais seguem se movimentando também nessa direção. Na mesma semana, a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, uma das mais conceituadas do país e da América Latina, foi comunicada pelo governo do estado de que deverá desocupar as dependências de sua sede, a Sala Minas Gerais, espaço construído exclusivamente para a orquestra.


O que há de comum entre os movimentos vividos recentemente em Minas Gerais e o Índice de Liberdade Acadêmica? Ambas as situações deflagram o impacto e a vulnerabilidade das decisões políticas de seus líderes/governantes sobre a ciência e a cultura e, por conseguinte, sobre a sociedade. Nos dois casos, há um desprezo à educação e à cultura por meio de processos que as fragilizam ou as desmontam.


A educação superior brasileira começa a dar sinais de esgotamento da capacidade de conviver com (i) a precariedade de recursos para as universidades e (ii) a ausência de concursos e de investimentos - esses últimos, veementemente banidos pelo anterior Presidente da República, que nunca teve cerimônia de demonstrar ausência de apreço à ciência e à universidade.


A Orquestra Filarmônica de Minas Gerais (OFMG), um dos marcos culturais erguidos no governo de Minas Gerais, na gestão Aécio-Anastasia, há quase 16 anos, tornou-se referência nacional e na América Latina pela sua qualidade técnica, o que lhe garantiu gravações pelo selo Naxos e indicação ao “Grammy Latino 2020 de Melhor álbum clássico do ano”. O atual governador de Minas Gerais já criticou o custo da construção da sede da OFMG e da manutenção de seus músicos.


Não vou me delongar na discussão técnica do ILA, mas apenas apontar que, na esteira de repressões veladas ou não, esse índice é uma importante contribuição para alertar a sociedade e apoiar a comunidade científica, em prol da liberdade acadêmica. Há de se vigiar os sinais que o ILA e os governos apontam.
A vida é um contínuo caminhar em desafiadores campos, ora minados, ora floridos. Na maioria das vezes, esse caminhar segue um automatismo pela imposição da sobrevivência econômica. A sociedade segue em plena alienação, consumida por seus desafios mais básicos.


No entanto, a vida nos revela, de forma silenciosa e lenta, as barbáries do submundo da perversidade e das artimanhas, ao mesmo tempo em que atua para nos fazer sentirmos prazerosamente atendidos e fugazmente realizados. A vida exige vigília constante. E é pela educação e pela cultura que essa vigília se faz condição necessária, sob pena de sucumbirmos ou sermos engolidos pela voracidade dos atrozes. Vigiemos, pois!

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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