Itamaraty aprova branco em vagas para negros em concurso para diplomata
Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel
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Samuel Procópio é um jovem negro, periférico, de 25 anos, que em pouquíssimo tempo construiu um currículo Lattes admirável. Formado em Direito pela PUC Minas e em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atualmente é mestrando em Direito Internacional também pela UFMG.
Recentemente, foi aprovado em um concurso para diplomata. Filho de uma professora da rede estadual de ensino, mulher negra e mãe solo, Samuel cresceu na região de Venda Nova, em BH, enfrentando o racismo e as dificuldades econômicas de uma família que acreditava na educação como única herança possível.
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Foi um dos poucos alunos negros na escola onde cursou, como bolsista, o ensino fundamental e médio. A bolsa o isentava da mensalidade, mas não do alto preço emocional de conviver, desde muito cedo, em um ambiente sem diversidade racial, o que custou sua autoestima. Cresceu sendo alvo de olhares que duvidavam de sua capacidade, de professores que o subestimavam e de colegas que o faziam questionar o próprio valor. Somente ao concluir o ensino médio, longe desse ambiente, percebeu que o problema nunca foi ele. E pôde sonhar mais alto: queria ser diplomata.
O sonho, no entanto, parecia quase impossível. Sua mãe, professora da rede pública estadual, se desdobrava entre escolas e tarefas extras para pagar os cursos preparatórios. O salário, como se sabe, é precário. Contaram com a ajuda de avós, tios, amigos e professores, um esforço coletivo de uma família negra apostando contra a estatística, a mesma que mostra que, a cada 24 minutos, um jovem negro é violentamente assassinado no Brasil.
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E Samuel conseguiu. Foi aprovado na reserva de vagas destinada a candidatos negros. Até que o nome de outro candidato surgiu: Anilton Roberto Turibio Júnior, filho de um delegado da Polícia Federal. Anilton demonstra seu alto poder aquisitivo em fotos nas redes sociais, ostentando viagens por diversos países da Europa. Diferentemente de Samuel, Anilton tem pele branca e cabelos lisos.
Em 2014, ao prestar vestibular para a Universidade Federal de Uberlândia, Anilton concorreu pela ampla concorrência. Fez o mesmo nos concursos de 2022 e 2023 para diplomata. Mas, em 2025, decidiu se autodeclarar negro. Foi o suficiente para disputar a mesma vaga que Samuel e “vencê-lo”.
Na primeira banca de heteroidentificação, composta por cinco pessoas, Anilton foi eliminado, considerado branco. No entanto, após recurso, uma segunda banca o aprovou como negro. Assim, Samuel perdeu a vaga que havia conquistado para uma pessoa que nitidamente não sofre exclusão racial no Brasil.
Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel. A prova disso é ver Samuel se tornar alvo de uma injustiça que retira seu direito de acesso a uma política pública destinada a pessoas negras, usada, neste caso, para privilegiar um candidato branco.
O caso levanta uma questão urgente: quem está monitorando a política de reserva de vagas para candidatos negros? Quando um homem branco é reconhecido como negro, enquanto um jovem negro perde um direito que lhe é garantido por lei, a política de promoção da igualdade racial se torna refém da branquitude e da mesma desigualdade que tenta combater.
Segundo o IBGE, pessoas negras representam 56% da população brasileira, mas continuam sendo as que menos acessam cargos públicos, as que mais morrem e as que mais sofrem com pobreza e violência. São também as que mais precisam provar, em cada espaço, que pertencem.
As políticas de ação afirmativa racial foram criadas para minimizar essa desigualdade. Não são um favor. São um direito. E quando o Estado permite que esse direito seja distorcido por decisões questionáveis de heteroidentificação, reforça o que a história sempre fez: retirar das mãos negras aquilo que lhes pertence por justiça.
Nesse roubo, Samuel não perdeu apenas uma vaga. Perdeu o direito de acreditar que esforço e dedicação bastam.O caso dele é mais do que um erro administrativo é um retrato cruel de um país que insiste em privilegiar a branquitude até mesmo nas políticas públicas destinadas à população negra.
Tentei contato com Anilton Júnior, com a banca organizadora do concurso e com o Ministério das Relações Exteriores para questionar os critérios utilizados pela segunda banca de heteroidentificação. Até o fechamento desta coluna, não obtive retorno. Assim que o candidato e as instituições se manifestarem, este texto será atualizado com as respectivas respostas.
Outro lado
Após a repercussão da coluna, a Assessoria Especial de Comunicação Social do Ministério das Relações Exteriores entrou em contato comigo via e-mail e respondi com as seguintes perguntas ao Itamaraty:
Por que um candidato de pele branca, cabelos lisos, fenótipo branco e filho de pais brancos está na lista de vagas reservadas a candidatos negros aprovados pela banca de heteroidentificação? A banca de heteroidentificação o considerou branco e, após o recurso, passou a considerá-lo negro? O que levou a banca de heteroidentificação a concluir que havia cometido um equívoco?
Por fim, o artigo abaixo, constante do edital, estabelece que, caso o candidato negro seja aprovado pela ampla concorrência, ele não deve ser contabilizado no quantitativo da reserva de vagas. Todos os candidatos negros foram aprovados pelas cotas? Quantos negros foram contabilizados na ampla concorrência? Quantos foram contabilizados nas cotas?
"4.4.7 Caso estejam aprovados e classificados, seja na Primeira ou na Segunda Fase do concurso, ou em ambas, dentro do quantitativo reservado à ampla concorrência, os candidatos que se autodeclararam negros não serão contabilizados no quantitativo reservado, nos termos da Lei nº 12.990/2014, dos artigos 8º e 9º da Instrução Normativa MGI nº 23/2023 e deste edital."
Segue então o retorno da Assessoria Especial de Comunicação Social do Ministério das Relações Exteriores, uma nota que, ao meu ver, não responde a nenhum dos pontos que destaquei na coluna e a nenhuma das perguntas. Na minha percepção, eles ignoram o fato de um homem de pele branca e cabelos lisos ter sido desqualificado pela banca de heretoidentificação e, após recurso, ser “aceito” como negro, sem ser negro. Eles estão muito mais preocupados em desmentir o Samuel e dizer que se o branco for desqualificado ele não iria ser chamado do que com a efetividade da política de promoção da igualdade racial - sendo que o que está em questão é a política contemplar a população negra. Como eu disse anteriormente, ser negro é ser violentado de forma constante contínua e cruel, sem pausa e sem repouso.
"Prezada senhora,
Fazemos referência ao artigo 'Itamaraty aprova branco em vagas para negros em concurso para diplomata', publicada em 13/11 último no jornal O Estado de Minas.
De acordo com o Edital nº 1, de 14 de maio de 2025, que tornou público o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata de 2025 (CACD 2025), restou clara a previsão de que os candidatos que se autodeclararam negros e que fossem aprovados na segunda fase do certame, seriam convocados para o procedimento de heteroidentificação. Nesse contexto, os candidatos que se autodeclararam pretos ou pardos no âmbito do concurso, e aprovados na segunda e última fase do certame, foram devidamente convocados para entrevista em procedimento de heteroidentificação, conforme se verifica no Edital nº 10, de 9 de outubro de 2025.
Segundo os termos do Edital, o candidato Samuel Procópio Menezes de Oliveira ficou em 14º posição entre os cotistas negros e não foi portanto considerado aprovado dentro das 10 vagas reservadas a pessoas negras.
O procedimento de heteroidentificação do CACD 2025 foi realizado nos dias 16 e 17 de outubro de 2025, por Comissão competente, nos termos do item 8 do Edital nº 1, de 14 de maio de 2025, e em observância às normas da Instrução Normativa MGI nº 23, de 25 de julho de 2023, e da Lei nº 12.990/2014 (Lei de Cotas). Compareceram ao procedimento de heteroidentificação 61 (sessenta e um) candidatos, sendo 45 (quarenta e cinco) considerados negros e 16 (dezesseis) não considerados negros, conforme resultado provisório publicado por meio do Edital nº 11, de 23 de outubro de 2025, em razão de não apresentarem fenótipo visível de pessoa negra, conforme motivação dada pela comissão de heteroidentificação. 11 (onze) candidatos interpuseram recursos contra o resultado provisório da comissão de heteroidentificação, conforme previsto em edital.
Em 29 de outubro de 2025, a Comissão Recursal reuniu-se e avaliou os 11 (onze) recursos, sendo que apenas 1 (um) recurso foi deferido, por unanimidade e 10 (dez) recursos foram indeferidos. Assim, o resultado final do procedimento de heteroidentificação que confirmou 46 (quarenta e seis) candidatos negros, foi publicado nos termos do Edital nº 12, de 4 de novembro de 2025, publicado no Diário Oficial da União em 5 de novembro de 2025.
Ressalta-se que a comissão de heteroidentifiacação do CACD 2025 foi composta por cinco membros indicados: um pelo Ministério da Igualdade Racial, um pela Fundação Cultural Palmares, um pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq e dois pelo Ministério das Relações Exteriores. Já a Comissão Recursal foi composta por três membros indicados pelos órgãos acima referidos, exceto o Ministério das Relações Exteriores, que não indicou nenhum membro para essa etapa.
O Instituto Rio Branco, em atuação conjunta com o Cebraspe, cuidou de dar transparência e publicidade a todos os atos relacionados ao certame, que pode ser acompanhado pelo seguinte endereço eletrônico: https://www.cebraspe.org.br/concursos/IRBR_25_DIPLOMACIA.
Finalmente, em referência ao último parágrafo do artigo, que menciona tentativa de contato com este Ministério, esclarece-se que não se verificou recebimento de qualquer consulta sobre o tema."
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
