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Correio Braziliense
Jurídico

Adib Abdouni analisa os riscos do controle das redes sociais pelo Estado

Riscos constitucionais e penais da proposta de controle estatal das redes sociais: regulamentar conteúdos para jovens e crianças é dever constitucional?

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Com o avanço das redes sociais, o espaço público migrou para o ambiente digital, transformando a forma como crianças, adolescentes e adultos se relacionam, compartilham ideias e constroem identidades. O uso intenso dessas plataformas tem levantado preocupações quanto à exposição de jovens a conteúdos prejudiciais, desinformação e riscos psicológicos. Em agosto de 2025, o Chefe do Poder Executivo encaminhou ao Congresso Nacional um Projeto de Lei visando regulamentar o acesso de crianças e adolescentes às redes sociais, propondo critérios de verificação de idade, limites de horário e responsabilidade das empresas provedoras.

A medida reacende um debate jurídico complexo: como equilibrar a proteção da infância e da adolescência com a preservação das liberdades fundamentais garantidas pela Constituição? O advogado constitucionalista e criminalista Adib Abdouni analisa, a seguir, os desafios legais, éticos e institucionais dessa iniciativa, oferecendo uma visão aprofundada sobre a regulamentação digital no Brasil.


O artigo de Adib Abdouni:

No século XXI, o espaço público não se limita mais à praça, ao parlamento ou à universidade. Ele se deslocou para a tela. As redes sociais transformaram-se no novo foro da civilização, onde identidades são forjadas, ideias disseminadas e condutas influenciadas em escala massiva.

O ambiente digital substituiu a vizinhança, reconfigurou a esfera doméstica e afetou profundamente os mecanismos de socialização, sobretudo entre os mais jovens.

Nesse novo cenário, o Estado encontra-se diante de um desafio que é, ao mesmo tempo, jurídico, ético e institucional: como regular esse espaço sem violar as liberdades fundamentais que sustentam o Estado Democrático de Direito?

O anúncio feito pelo Chefe do Poder Executivo, em agosto de 2025, acerca do encaminhamento ao Congresso Nacional de um Projeto de Lei voltado à regulamentação do uso das redes sociais por jovens, reacende um debate jurídico sensível.

Trata-se de uma proposta que pretende, em essência, limitar o acesso irrestrito de crianças e adolescentes às plataformas digitais, instituindo critérios de verificação de idade, horários de funcionamento e responsabilização das empresas provedoras.

A justificativa é a proteção da saúde mental, emocional e física da população infantojuvenil, cada vez mais exposta a conteúdos violentos, desinformativos ou psicologicamente danosos.

A iniciativa, por mais bem-intencionada que seja, não pode prescindir de uma análise rigorosa à luz da Constituição Federal, da legislação penal vigente e dos princípios que informam o sistema jurídico brasileiro.

Qualquer norma restritiva de direitos fundamentais, sobretudo quando atinge a liberdade de expressão, o direito à informação e a autodeterminação digital, deve ser construída com parcimônia, técnica e respeito à arquitetura constitucional vigente.

Não se trata de negar a necessidade de regulação, mas de garantir que ela se realize nos marcos do devido processo legislativo, com respeito ao princípio da legalidade, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana.

A Constituição de 1988, em seu artigo 5º, inciso IV, consagra a liberdade de manifestação do pensamento, enquanto o inciso IX garante a liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

Essas garantias não são privilégios de adultos, mas direitos de toda a população, inclusive da infância e da adolescência, respeitadas as peculiaridades do desenvolvimento humano.

O caput do artigo 227 impõe ao Estado, à família e à sociedade o dever de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à dignidade, ao respeito, à saúde e, à convivência comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão, o desafio, portanto, é harmonizar essas duas ordens normativas: liberdade e proteção.

Nesse ponto, é imprescindível reconhecer que a liberdade de expressão, embora fundamental, não é absoluta, a própria Constituição prevê limites claros quando outros direitos fundamentais são colocados em risco, como a honra, a imagem, a privacidade e, sobretudo, a integridade física e psicológica.

A proteção da infância e da adolescência, por seu caráter prioritário, pode justificar a imposição de restrições razoáveis ao uso de determinados meios, desde que tais limitações respeitem os princípios da legalidade, da razoabilidade e da mínima intervenção.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem afirmado reiteradamente que o controle estatal de conteúdos deve ser excepcional e fundado em parâmetros objetivos, jamais servindo à censura ideológica ou ao moralismo arbitrário.

No plano infraconstitucional, o Marco Civil da Internet, consagrado pela Lei nº 12.965/2014, estabelece um arcabouço normativo sólido para o uso da internet no Brasil, seus pilares são a neutralidade da rede, a preservação da liberdade de expressão e a proteção da privacidade dos usuários.

O artigo 18 da referida norma veda a responsabilização dos provedores de aplicações por conteúdos gerados por terceiros, salvo por descumprimento de ordem judicial específica, trata-se de uma cláusula de proteção à inovação e à liberdade de informação.

No entanto, o artigo 19 já prevê hipóteses de responsabilização civil quando há inércia diante de ordens judiciais válidas, configurando um modelo de responsabilidade subsidiária condicionada.

O projeto de regulamentação das redes sociais para jovens propõe alterar esse modelo, atribuindo às plataformas digitais uma responsabilidade objetiva ou, ao menos, solidária, quando houver falha em mecanismos de verificação etária, moderação algorítmica ou exposição a conteúdos inadequados.

Tal proposta impõe um novo regime jurídico, cuja constitucionalidade dependerá da demonstração de proporcionalidade entre o risco social enfrentado, a limitação imposta à liberdade econômica, à neutralidade da rede e à livre iniciativa (art. 170, caput, CF).

A intervenção estatal em atividades privadas exige fundamento técnico e demonstração de que o mercado, por sua inércia, contribuiu para a lesão de direitos fundamentais.

A proteção da infância, nesse contexto, pode justificar a imposição de deveres positivos às plataformas, sobretudo quando estas detêm o controle do algoritmo e lucram com a exposição contínua de crianças a conteúdos que sabidamente causam danos.

No campo do Direito Penal, o debate torna-se ainda mais delicado, a tradição penal brasileira repousa sobre o princípio da legalidade estrita, da intervenção mínima e da fragmentariedade.

O Direito Penal só deve incidir quando todas as outras esferas jurídicas falharam em prevenir o dano, contudo, a crescente complexidade das redes digitais exige a atualização dos tipos penais e das técnicas de investigação.

A incitação ao crime, a apologia a práticas delituosas, os crimes contra a honra, a pedofilia digital, a instigação ao suicídio e à automutilação, bem como a disseminação de discurso de ódio, passaram a assumir novas configurações no espaço virtual, demandando interpretação sistemática e adaptação jurisprudencial.

A proposta de regulamentação pode incluir, por exemplo, dispositivos que estabeleçam agravantes penais para condutas praticadas contra ou por menores em ambiente digital, inclusive mediante o uso de perfis falsos ou contas automatizadas.

Embora compreensível sob a ótica protetiva, tal medida deve ser calibrada com cuidado para não cair na armadilha do Direito Penal simbólico, ou seja, da criação de tipos penais ou agravantes de aplicação duvidosa, destinados mais à resposta política do que à eficácia punitiva real, o legislador deve se valer de dados empíricos, estudos criminológicos e pareceres técnicos antes de ampliar o espectro de punição no campo digital.

Além disso, não se pode desconsiderar que a repressão penal carece de estrutura técnica adequada para o enfrentamento de crimes digitais complexos, as instituições, núcleos de investigação tecnológica e promotorias digitais são ainda escassos e mal equipados, qualquer expansão do direito sancionador exige, como condição de legitimidade, a correspondente ampliação da capacidade investigativa do Estado, sob pena de se converter em mera retórica criminal.

No tocante à proteção da infância, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) continua sendo o principal referencial normativo, nele se consagra o princípio da proteção integral e da prioridade absoluta, o que justifica medidas regulatórias voltadas à restrição de acesso a conteúdos nocivos, desde que estas se realizem em harmonia com os direitos fundamentais do menor, e não em detrimento de sua autonomia progressiva.

A regulamentação, para ser legítima, deve vir acompanhada de políticas públicas de inclusão digital consciente, educação midiática, suporte psicológico e capacitação familiar, evitando o modelo meramente proibitivo e punitivista.

Nesse cenário, cabe ao legislador atuar com parcimônia, evitando tanto o excesso regulatório que comprometa a liberdade, quanto a omissão cúmplice diante da exposição contínua de jovens a um ambiente digital hostil, viciante e desregulado, sendo que o equilíbrio necessário não reside na censura, mas na regulação racional, técnica, dialogada e comprometida com os direitos fundamentais.

O debate sobre a regulamentação das redes sociais revela, portanto, a encruzilhada do Direito contemporâneo: como proteger sem proibir, como regular sem censurar, como responsabilizar sem punir por antecipação, as respostas não são simples, mas devem ser construídas a partir do texto constitucional, com base na legalidade, na razoabilidade e no compromisso com a dignidade da pessoa humana, especialmente da juventude brasileira.

O direito não pode se ausentar da realidade digital, o silêncio jurídico frente às novas formas de vulnerabilidade e violência equivale à omissão do Estado, mas também não pode o direito abandonar seus princípios em nome da conveniência política.

A Constituição de 1988 não é um texto neutro: ela exige do intérprete coragem para proteger e prudência para intervir, entre o grito da urgência social, o eco da liberdade ameaçada, cabe ao jurista, e ao legislador, o papel de encontrar o ponto justo da ação normativa.

*Adib Abdouni, advogado Constitucionalista e Criminalista.

 
 

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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