Renato de Faria
Renato De Faria
Filósofo. Doutor em educação e mestre em Ética. Professor.
FILOSOFIA EXPLICADINHA

O gozo de se explorar: Freud no coração do capitalismo

A satisfação inconsciente não advém apenas do salário ou do reconhecimento, mas da própria experiência de sacrifício

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O masoquismo em Freud aparece como uma das expressões mais paradoxais da vida pulsional, distinguindo três modalidades: a excitação sexual pela dor; a posição de passividade diante do outro; e o chamado masoquismo moral, talvez o mais enigmático, em que o sujeito parece encontrar satisfação no sofrimento imposto não por um parceiro(a), mas pela instância do superego, uma moral que às vezes se torna punitiva demais, impiedosa.

Nesse último, não se trata de prazer na dor física, mas da obediência a uma exigência interna que transforma o sofrimento em uma forma de dever ou expiação.

Essa figura do masoquismo moral é especialmente fértil para pensar a subjetividade no neoliberalismo. Na cultura do desempenho, descrita por autores como Byung-Chul Han, o sujeito não é mais coagido por um patrão externo visível, mas por um imperativo internalizado: 'seja produtivo', 'seja eficiente', 'supere-se sempre'.

Aqui, o supereu neoliberal não manda renunciar, mas ordena gozar trabalhando, transformando o sofrimento em virtude. A devoção ao trabalho — longas jornadas, esvaziamento do tempo livre, autoexploração sem limites — é vivida como se fosse um caminho necessário para a realização pessoal.

Nessa dinâmica, parece que o sujeito neoliberal encarna uma espécie de masoquismo moral atualizado: sua satisfação inconsciente não advém apenas do salário ou do reconhecimento, mas da própria experiência de sacrifício. O sofrimento torna-se prova de valor, uma medalha invisível de dedicação.

Quanto mais abdica de descanso, de desejo e de corpo, mais acredita confirmar sua existência como trabalhador “digno” ou “empreendedor de si mesmo”. A dor subjetiva — ansiedade, burnout, depressão — é reinterpretada como sinal de compromisso, como se fosse inevitável e até necessária, muitas vezes romantizada pelos gurus da “era tecnológica e medicalizada”, dando origem a movimentos como o “NoFap”, com a proposta de reduzir a atividade sexual para poder produzir mais. Resumindo: o trabalho como substituto da atividade sexual (o assunto é tão amplo que dedicarei uma outra coluna para falar sobre isso).

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Se em Freud o masoquista moral se submete ao tribunal severo do supereu, no neoliberalismo essa instância assume a forma do ideal de performance. Trata-se de uma nova economia libidinal, aonde a culpa não vem do não-trabalho, mas do “não trabalhar o suficiente”. Nos parece que, nessa conjuntura, a devoção ao trabalho é menos um gesto consciente de disciplina e mais uma forma de prazer na submissão à lógica impiedosa, prazer paradoxal, que coincide com o esgotamento.

Assim, pode-se pensar que o neoliberalismo não apenas explora o trabalhador no plano econômico, mas captura o masoquismo estrutural do psiquismo, configurando-o em chave produtivista. O sofrimento, antes índice de uma dívida com o supereu freudiano, torna-se o modo privilegiado de testemunhar lealdade a um sistema que exige não apenas corpos e tempo, mas também a entrega subjetiva do desejo.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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