
Água, solo e gente
"Os senhores me desculpem, mezungo não entende o sofrimento de um negro"
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Este mês teremos uma segunda-feira muito especial. No próximo dia 20, um dos nomes que mais admiro pela capacidade de trabalhar e talhar as palavras, estará, a partir das 19 horas, no auditório do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais conversando sobre o livro O Rio Infinito – Cia das Letras.
O tema do bate-papo será Água, solo e gente, combinação perfeita que vem sofrendo tentativas ultrajantes de aniquilação. Nada melhor que a poesia e a prosa de Mia Couto para alertar para a necessidade de olharmos com cuidado para essas três forças que nos traduzem, ao menos aos que se identificam como seres humanos.
Mia nasceu no continente africano, em Moçambique, terra para a qual me dirijo vez ou outra carregando linhas e tramas, onde ensino costura e aprendo viver; onde, quando distraída, me perco caminhado nas ruelas de aldeias interioranas e, para conseguir voltar pra casa, preciso me comunicar com gestos e sorrisos, porque o português é sobrepujado pelos dialetos locais. Adoro a parte da África que conseguiu resistir, nem que seja um tiquinho, aos desmandos dos colonizadores.
Aliás, Mia Couto consegue recriar a língua portuguesa através de neologismos (nos fazendo lembrar de nosso Guimarães Rosa) que faz a gente pensar “como nunca pensei nessa palavra ou expressão” tão encaixada no contexto de cada história a que se presta, as histórias dele e as nossas.
Rio e sorrio ao ler e reler as prosas das personagens de outro de seus livros, um de meus prediletos, O fio das Missangas (Cia das Letras). Fico pensando se aquilo tudo é de fato ficção ou fatos vividos por quem tem o dom de observar e transformar em prosa. “A maioria dos contos desse volume”, anuncia a orelha, “adentra com fina sensibilidade o universo feminino”. Só lendo o corpo todo para entender o significado de tudo isso, de cada missanga colocada em sequência aleatória ou muito bem tramada em um fio condutor.
A primeira vez que fui ao Malawi me lembrei de uma de suas crônicas Mezungos publicada no livro Cronicando (Editorial Caminho – Portugual) ao ouvir as crianças chamando minha atenção gritando: muzungoooo!!! termo usado para designar o homem branco. “Os senhores me desculpem, mezungo não entende o sofrimento de um negro”, disse o personagem. Não entende mesmo, mas certamente lhe é possível perceber sua responsabilidade diante das injustiças às quais grupos vulneráveis estão submetidos, o que leva à perpetuação das desigualdades.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.