Jéssica Balbino
Jéssica Balbino
Jornalista e curadora de eventos literários no Brasil, escreve sobre corpos dissidentes. Criadora do Margens, projeto que difunde conteúdo sobre mulheres periféricas na escrita.
DIGNIDADE

Crianças e adolescentes gordas existem e precisam de espaço

Dia das Crianças e a culpa gorda de quem só quer existir e encontrar um lugar para caber

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Tenho 40 anos e peso mais de 140 quilos. Sim. É isso mesmo que você leu. E tá tudo bem. Ou quase tudo bem. Não fosse a sensação constante de inadequação. Não comigo mesma, mas com o mundo, que insiste em berrar: você não. Você não cabe aqui.

E demonstra: cada dia mais, cadeiras de praia são colocadas à frente de estabelecimentos como as únicas opções de local para lanchar ou tomar uma cerveja. Não seria um problema, caso elas suportassem mais de 100 quilos sem arriar ou fazer corpos como o meu se esborracharem no chão, amplificando uma vergonha que poderia ser evitada, claro, bastasse pensar que nem todo mundo pesa 60 quilos e fica confortável num pedaço de pano na calçada.

Mas, tô fugindo do assunto. Domingo próximo (12) é o Dia das Crianças e esse é um tema que sempre me pega muito. Quando olho para as minhas fotos de adolescente, não vejo alguém gorda. Eu não era, evidentemente, esquálida, mas tava longe de ser gorda como sou hoje, por exemplo. E, ainda sim, sempre me senti inadequada. Enorme demais. Grande demais para qualquer espaço.

 

 

Ano passado, escrevi sobre “Quem defende a criança gorda?”. Revisei o texto para saber que ninguém, claro. E me senti absolutamente mal relendo, porque lembrei de quando eu pedia perdão a Deus por ser uma criança gorda e tentava entender qual era o mal que eu tinha cometido por não poder comer, tal qual as demais crianças, ou por não poder brincar, ou por não ser digna de afeto.

Um lugar para caber. Foi isso que busquei - talvez ainda busque - a vida inteira. Mas, na adolescência, esse sentimento era mais forte. E a sensação de deslocamento também. Não caber, não pertencer, não poder são sensações que somente os corpos interditados sabem quais são.

Ver imagens do Dia das Crianças nas escolas me causa arrepios. Não que não seja legal. Mas eu penso que, se eu fosse criança, não teria uma fantasia que coubesse em mim para eu ir à escola na data. Teria também pouco cabelo - mesmo no meu auge - para fazer um cabelo maluco. Vi um meme para a convocação apenas do maluco e tô nesse dia, apenas.


Reli, para o clube do livro Meu Corpo Sou Eu o livro “Eu Só Cabia nas Palavras”, da atriz Rafaela Ferreira e fiquei pensando numa frase que ouvi do Toni C., escritor, dia desses. Numa mesa sobre literatura infantojuvenil, ele disse que, numa conversa com Emicida, ambos concluíram que chegam tarde na vida das pessoas. Quando elas já são adultas. Que seria importante chegar mais cedo.

Da minha parte, penso que seria urgente. No livro, Rafaela traz a personagem Gio, que é uma adolescente gorda, lidando com a solidão no ambiente escolar, a saída da melhor amiga para outra escola, a chegada de uma nova garota na sala de aula e buscando, desesperadamente, um lugar para caber. Eis, então, o título, já que ela entende que cabe nas palavras. E, através de vídeos e textos nas redes sociais, começa um processo de autoamor e encontro com novas pessoas e interesses.

Gio é genial, bonita, interessante, consciente de si mesma. Sinto até uma pontinha de inveja. Parece que, de alguma forma, ela conseguiu, aos 16 anos, o que ainda busco aos 40, que é um jeito de caber, de não depender tanto do olhar do outro. E embora eu afirme que sim, tudo bem ser do meu tamanho - e tudo bem mesmo - há sempre o olhar do outro que é um impeditivo. Que sempre não ama de volta, esconde, não convida, deixa de lado, não se desculpa, não reconhece as próprias falhas. Que não dá espaço para pessoa gorda existir.

Gosto demais do livro e da personagem construída pela Rafa porque ela não busca redenção ou magreza. Ela busca esse lugar de caber. E, de alguma forma, não sem dor,  consegue. Consegue se olhar com amor, consegue se escolher, consegue criar um ambiente em que ela é a responsável por si mesma e pela própria felicidade. E consegue transpor, através do afeto coletivo, a barreira entre o viver e o se apagar quando falamos de corpos gordos.

Eu definitivamente gosto bastante da leitura e só lamento pelo que disse acima: que ela tenha chegado tão tarde a minha vida. Que personagens como eu fui adolescente tenham demorado tanto a existir. Assim como a Gio, eu amava teatro, mas escolhi jornalismo por não conseguir me imaginar gorda e num palco.

Escrevo hoje sobre o livro para dizer que é urgente que tenhamos personagens gordas que não estão apenas buscando emagrecer ou um amor que as aceite e as traga o mundo em promessas, mas que existam. Que tenham interesses e conflitos. Que não sejam só sobre ser gorda, em si. Mas que sejam.

Senti falta, a vida toda, que minha estante estivesse ocupada por personagens como a Gio. Por autoras como a Rafa. Por literatura feita por gente como eu. Senti falta, a vida toda, de ler algo assim. Na adolescência, lia diferentes coisas e tentava me identificar, desesperadamente, com algum pedaço das garotas loiras e magras, que, quando muito desajustadas, usavam óculos e eram desastradas.

Foi muito bom ler uma trama em que a adolescente consegue se enxergar para além do peso e da culpa que nos fazem sentir por ter um corpo gordo.

E, por mim, vocês já sabem: eu gostaria muito de distribuir livros como o da Rafa em escolas públicas. Em locais que acolhem adolescentes. Para todas nós que lidamos com a pressão pelo corpo perfeito o tempo todo. Gostaria que pudéssemos nos enxergar possíveis a partir dela.

Assim como a personagem, eu também só cabia nas palavras. Só cabia tanto que não consegui me imaginar atriz. Precisei de um nome como jornalista para chegar antes do meu corpo e me blindar. Demorei até que corpo e nome chegassem juntos. Talvez eu só tenha conseguido isso agora.

Vale dizer que crianças gordas, assim como adolescentes gordos, querem caber não apenas nas cadeiras, mas nos brinquedos dos parquinhos, dos parques de diversões, nos imaginários dos pais e mães, dos amigos, dos amores. Pessoas gordas existem e culpá-las por serem gordas não as vai fazer emagrecer.

O que podemos fazer?

No Brasil, mais de 340 mil crianças entre 5 e 10 anos foram diagnosticadas com obesidade na rede de Atenção Primária à Saúde, segundo dados do Ministério da Saúde. O número, de 2022, não é pequeno — mas também não dá conta de toda a realidade. Ele se refere apenas às crianças acompanhadas pelo SUS. Quando ampliamos o olhar para toda a população, o cenário é ainda mais expressivo: 13,2% das crianças de cinco a nove anos têm obesidade, e cerca de 28% apresentam excesso de peso, o que inclui sobrepeso e obesidade.

As projeções internacionais acendem um alerta ainda maior. O Atlas Mundial da Obesidade 2024 estima que, em 2035, metade das crianças e adolescentes brasileiros entre 5 e 19 anos terão sobrepeso ou obesidade. Em números absolutos, isso significa passar de aproximadamente 15,6 milhões de jovens com excesso de peso em 2020 para mais de 20 milhões em pouco mais de uma década — um crescimento anual de 1,8%. A taxa brasileira é quase três vezes maior que a média mundial em determinadas faixas etárias. Entre menores de cinco anos, por exemplo, 14,2% têm excesso de peso no país, contra 5,6% no mundo.

Esses números não falam apenas de corpos individuais. Falam de ambientes alimentares desiguais, falta de políticas públicas efetivas e um modelo de sociedade que transformou comida ultraprocessada em rotina e espaços seguros para brincar em luxo. A obesidade infantil no Brasil não é uma epidemia de vontades individuais, mas de estruturas: de escolas que oferecem alimentos industrializados, de bairros sem áreas de lazer, de publicidade agressiva que mira nas crianças, e de desigualdades econômicas que determinam o que vai ou não para o prato.

É urgente que o debate sobre obesidade infantil fuja da lógica da culpabilização dos corpos e das famílias. Não se trata de apontar dedos para crianças “gordas”, mas de encarar os números como um retrato do país — um país que não garante alimentação adequada e saudável para todos. A resposta não está em dietas punitivas nem em discursos moralistas travestidos de “preocupação com a saúde”, e sim em políticas de segurança alimentar, regulação de publicidade infantil, incentivo à atividade física e valorização da cultura alimentar local.

Em tempo, em 2019, o UNICEF já chamava atenção para a saúde mental na adolescência. De lá para cá, o que se consolidou nos dados brasileiros é que o estigma do corpo — inclusive o peso —, o bullying e a exclusão pesam na balança do sofrimento psíquico.

A PeNSE 2019 apontou que 21,4% dos estudantes de 13 a 17 anos chegaram a sentir que a vida “não vale a pena ser vivida”, e estudos com a mesma base mostram associação entre vitimização por bullying e ideação suicida.

A literatura também indica que insatisfação corporal — frequentemente atravessada por padrões gordofóbicos — se relaciona a pensamentos e planos suicidas. Não se trata de culpar corpos, mas de reconhecer que o ambiente de violência simbólica e humilhação adoece. Nesse contexto, o país viu taxas de suicídio crescerem entre jovens na última década, o que exige respostas que unam cuidado em saúde mental, combate ao bullying e enfrentamento ao estigma do corpo.

Os corpos das crianças brasileiras estão dizendo algo. É preciso ouvir com atenção — e agir com responsabilidade coletiva.

Aproveitando o ensejo, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), cuidar de uma criança é dever de todos. Isso significa que, mesmo que você não seja pai, mãe ou responsável direto, também tem um papel no cuidado com as crianças que estão no mundo.

Por isso, não seja o adulto que reproduz violências contra crianças gordas — ameaçando, punindo, moralizando seus corpos como se fossem pecadores, criminosos ou doentes. Em vez disso, acolha. Seja presença segura, não fonte de trauma.


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