Autocandidato ao Nobel, Trump protagoniza o fim da guerra em Gaza
Chefe do Hamas comemora, mas Netanyahu ainda negocia o apoio do seu governo ao acordo de paz entre Israel e o Hamas, mediado pelos Estados Unidos
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A foto de dois meninos de mãos dadas, um com a camisa azul de Israel e seu quipá, e outro com a bandeira da Palestina e seu lenço quadriculado, que circula nas redes sociais desde o começo da guerra em Gaza, provocada por um ataque terrorista do Hamas, passou fazer um sentido prático. Mas ainda não será nada fácil ver isso acontecer, com as sequelas de uma guerra que ceifou as vidas de milhares de crianças. Sim, é uma mensagem utópica: a convivência fraterna entre palestinos e israelenses. Entretanto, o processo civilizatório não existiria sem as utopias.
A existência do Estado Palestino é absurdamente diatópica depois da guerra, com Gaza em escombros. O Hamas sobreviveu, apesar das duras perdas nos constantes bombardeios que sofreu, inclusive depois de anunciado o cessar-fogo. Mas o acordo se deve à resiliência de povo palestino e às pressões internacionais, sem falar nos constantes protestos de israelenses, que queriam o fim da guerra para trazer para casa os reféns.
Na guerra da Faixa de Gaza, ambos os lados têm lugar de fala, com um rosário de argumentos para ir à guerra. Entretanto, nada justifica o ataque terrorista do Hamas ao território de Israel, nem legitima o massacre de civis palestinos, principalmente crianças, mulheres e idosos pelo Exército israelense.
Era uma espécie de Lei de Talião: olho por olho, dente por dente. Havia um “tit for tat” na relação de Israel com seus inimigos na região. A expressão vem do holandês dit vor dat (“este por esse”). Netanyahu alternava retaliação ao Hamas, sempre que havia uma agressão, e cooperação tácita, após o cessar-fogo.
Essa estratégia enfraquecia a Autoridade Palestina, inviabilizava a criação de um Estado palestino independente e possibilitava a colonização nos territórios ocupados por Israel na Cisjordânia. Entretanto, saiu do controle. O Hamas se fortaleceu e promoveu um violento ataque terrorista, que pegou de surpresa o governo de Netanyahu. O que aconteceu depois nós assistimos em tempo real, dia e noite, na Faixa de Gaza.
O anúncio do cessar-fogo em Gaza, mediado por Donald Trump, é simultaneamente o desfecho de uma guerra e mais o ponto de inflexão de uma disputa política global. O presidente norte-americano, autoproclamado candidato ao Nobel da Paz, age num contexto em que a diplomacia foi substituída pela performance. Sua pressa em anunciar o acordo, antes mesmo da votação no gabinete israelense, tem cálculo eleitoral e simbólico: converter a tragédia humanitária em capital político.
Mais do que uma conquista diplomática, a paz se torna um troféu pessoal num momento em que Trump busca reconfigurar sua imagem de homem forte e impetuoso para a de pacificador mundial, por meio do acordo. Negociado sob forte pressão dos aliados de todas as partes envolvidas, o acordo entre Estados Unidos, Israel e Hamas encerra – ao menos provisoriamente – dois anos de um conflito que custou mais de 67 mil vidas palestinas, segundo organismos internacionais, começou com um ataque do Hamas que matou 1.200 pessoas e sequestrou 251 reféns em território israelense.
O Hamas promete devolver corpos e reféns vivos; Israel, por sua vez, reduzirá a ocupação de 75% para 57% da Faixa de Gaza de imediato. A promessa de cessar-fogo, contudo, repousa sobre areia movediço, as mesmas que soterraram acordos anteriores. Netanyahu, acuado internamente e pressionado pela extrema direita, tenta transformar o acordo em “vitória moral”, mantendo sua narrativa de força. A sobrevivência de seu governo depende de conciliar a exigência militar de desarmar o Hamas com a necessidade de apaziguar aliados ultranacionalistas.
Por outro lado, o Hamas aproveita o momento para reivindicar legitimidade política, apostando que a libertação dos reféns e a suspensão dos bombardeios restituam-lhe influência no cenário palestino, onde a Autoridade Nacional está enfraquecida. A existência de uma paz duradoura será um longo caminho, somente possível se houver o reconhecimento do Estado palestino por Israel. Para dar certo, será importante a presença efetiva da Organização das Nações Unidas (ONU).
Trump emerge como o grande protagonista. Regeu negociações no Egito, Catar e Turquia, convertendo o poder de coerção norte-americano em instrumento de diplomacia relâmpago. Sob ameaça de sanções e isolamento, Netanyahu cedeu, inclusive pedindo desculpas ao emir do Catar após o bombardeio em Doha.
Ao antecipar o anúncio do acordo às vésperas da divulgação do Nobel, Trump associa seu nome à paz e desloca a narrativa global de incendiário populista a mediador de crises. Netanyahu espera que a retórica de “vitória diplomática” o mantenha no poder. Já o Hamas busca sobreviver como ator político legítimo. Enquanto isso, a imagem dos meninos israelenses e palestino de mãos dadas continuam a circular nas redes como lembrança de uma utopia civilizatória. A paz, no Oriente Médio, permanece um território imaginado, sustentado mais pela esperança dos povos do que pela boa-fé dos líderes.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.