Há poucos dias cheguei de uma missão humanitária no continente africano. Vou ao Malawi e a Madagascar de uma a duas vezes por ano, desde 2019, mas desta vez o que vi foi capaz de me inquietar ainda mais. Além de acompanhar a escalada da miséria material, me enchafurdei na pobreza que insiste em permear os relacionamentos humanos.
Além de me envolver com a instalação e manutenção de oficinas de costura como fonte de ocupação e renda, me vi às voltas com as dificuldades sofridas pela comunidade LGBTQIAPN+ no continente que concentra o maior número de países com leis que a criminaliza. Pessoas que não se identificam com os padrões sociais e normativos da sexualidade sempre estiveram no meu foco e foram alvo de minha luta por reconhecimento e respeito às diferenças.
Em Antananarivo, capital de Madagascar, me encontrei quase que às escondidas com duas pessoas que se auto enquadram como sendo queer e não se identificam com as normas de gênero e sexualidade hetero. Numa noite fui a um hotel distante do centro que aloja alguns funcionários de uma empresa de TI. A natureza do home office facilita a vida daqueles que são forçados a se manter longe dos olhos da sociedade.
Depois de atravessar uma rua baldia e escura, entrei no prédio praticamente vazio onde fui recebida por Nate com um abraço carinhoso. Com 25 anos, formado em direito e fluente em cinco línguas, ele me contou sua trajetória a começar pela rejeição sofrida dentro de sua família desde a infância. Saí de lá, ao mesmo tempo feliz por ver nele uma grande pessoa, como extremamente triste por saber que os desafios que o cercam são capazes de imobilizar até o mais decidido dos seres.
Na manhã seguinte, bem cedo, atravessei a cidade caótica e fui ao encontro de Stell, de aparência androgena e meiga. Escolhemos uma mesa no canto da cafeteria e precisamos nos aproximar ao máximo de forma que eu conseguisse ouvir sua voz a sussurrar aos meus ouvidos aquilo que, caso os demais convivas ouvissem, nos renderia um linchamento. Stell trabalha como vendedor de loja e modelo de moda, e também precisou se isolar dos pais e dos irmãos incapazes de aceitá-lo.
Por ironia, em 2019, entrou em vigor em Madagascar uma lei relativa a luta contra a violência baseada em gênero. Porém, de pouca abrangência e alcance, poucos são os que a conhecem e menos ainda os que a cumprem.
De posse dos dois depoimentos, parti para o sul da ilha onde infelizmente não consegui nenhum nativo com quem pudesse conversar abertamente sobre o tema. Quanto mais longe da capital, mais medo, tabus e julgamentos negativos envolvendo o livre exercício da sexualidade. Consegui conversar com um estrangeiro que vive na ilha há quatro anos que me contou sobre a dificuldade de encontrar parceiros nativos. Todos com os quais ele se envolveu são também estrangeiros. “É como se não existisse nenhum homossexual aqui. Mas isso está longe de ser verdade. A repreensão é tanta que os próprios gays encontram dificuldades em si aceitar”.
Onde a miséria material impera, há fome, sede e dificuldade de acesso à educação, todos os outros tipos de miséria se alastram deixando para segundo plano questões importantes a serem discutidas.
No próximo domingo, conto sobre os encontros que tive no Malawi, país para onde fui na sequência e que, infelizmente, também trata os diferentes de forma desigual, com insultos e julgamentos como se membros da comunidade LGBTQIAPN+ fossem a escória da sociedade.