Vivemos a era do escrutínio político e da destruição das vontades. Sem base em ciência ou razão, quem tem poder não quer a concorrência do livre pensamento e busca credibilidade nas pesquisas de opinião — certos de que ninguém percebe que pesquisas são boatos estatísticos que usam simulações para aprisionar o fato no cérebro e no coração do cidadão.
Pesquisas são recados aos perdedores: querem ser atlas e bússola para todos, agulha a conduzir manadas e impor uma interpretação da realidade. A ordem do universo não é invisível; parece uma ameaça à sabedoria. O que predomina é o corretor moral da opinião para a sociedade não pensar nada antes de ler o que lhe mandam para começar a pensar.
Assim funciona o mundo sabotador da liberdade: aqui está a decisão, podem começar a discussão.
Assim funciona a realidade por onde trafegam os governos atuais. Todas as situações visam enquadramento, aspiram a ser obsessões. São súmulas que todos devem aceitar, nunca pontos de vista sobre as faces invertidas de uma mesma moeda. Quem detém o poder de transformar em fato o que diz ou pensa, atormenta a todos com sua ideia. Como precisa de adeptos para se estabelecer, sobrecarrega os meios de comunicação de análises condescendentes. Tão repetido artifício não disfarça mais ser artifício.
Quem aceita sem compreender está sempre muito menos inquieto do que quem compreende sem aceitar. São derivas políticas, comerciais, intelectuais, judiciais, eclesiais, morais, musicais... São modas de um mundo obediente que congelou a memória e o tempo da reflexão.
Na sociedade de controle atual, mandar é transformar ordem em consciência. A cabeça confusa de um único sujeito que nunca encontra falhas em si mesmo é pura ideologia. Sabota a verdade dizendo que é do interesse geral. Quem o repete o ajuda a acomodar a todos.
Tudo está organizado para impor detalhes de uma realidade fragmentada. Pela regra do empastelamento, não há mais sábios ou liberdade para pensar sem condicionamento. Tudo está indexado aos valores de quem detém o poder de definir o que é valor. Interesses de estados, governos, instituições e personalidades de toda parte tornam-se fragmentos midiáticos. Trata-se de verdadeiras bombas-relógio, espoletas e ruídos de superficialidades, pratos-feitos, ódios e preconceitos.
Ninguém mais arranca da vida esse carrapato que se tornou a confusão de notícias, comentários, mesas-redondas, webinar, ofertas de tudo, variantes monstruosas tentando explicar, defender ou atacar algum alvo humano. Síndrome de consumo excessivo da trivialidade que tira a concentração.
Impõe-se, assim, uma rotina de exasperação, em que só é aceito quem se torna ventríloquo da ordem unida. E o pior: nem tudo que fere e cinde a personalidade é propriamente manipulado, visto que muitas vezes é assimilado, naturalizado e repetido sem consciência.
Em todos os continentes, verdades absolutas são ditas a torto e a direito numa arapuca para fazer o anormal parecer natural. Elevados ao tom da cólera, infantilizados pela manipulação afetiva ou lançados para bajular ou amedrontar, o que lemos, vemos ou ouvimos traz a marca do ser humano com algum poder — dos pequenos aos exagerados.
Até o humor é sem graça se serve a ignomínia ou quer humanizar a idiotice.
Não se trata de negar a realidade. Mas é bom, para não se tornar escravo de sua compreensão pasteurizada, escapar da loteria uniforme que virou a interpretação dos acontecimentos mundiais. Manter a porta aberta para distinguir necessidades que só interessam a quem as divulga.
Desviar-se do labirinto da conformidade, das ideias prontas e repetidas, que correm como gêmeas pelos blogs, jornais, revistas, televisões e internet, é tarefa difícil. Sem alguma noção de como o poder domina a mente de um poderoso, é quase impossível deduzir se suas frases ou ações são fraudes ou verdades.
São inúmeros os acontecimentos, em todos os países, que inundam a mídia e impõem um tempo sofrido ao cidadão que busca interpretar e entender os fatos de forma sincera e verdadeira. Afinal, a grande maioria, se não sabe, desconfia. É o inconformismo sadio de quem não perdeu a noção de que desenvolver sabedoria para identificar o impostor é a boa moldura da vida.
O excesso de opinião igual conduz a uma indigestão de opinião. Trata-se de um cativeiro estéril da mente que pode levar a humanidade ao extermínio da comunicação, por simplesmente não haver mais nada a dizer.
Admiro o contra-pensamento. E, para manter a linha, ilustro com um acidente com uma torrada:
Sara contou ao rabino que havia presenciado um milagre no café da manhã. Deixou a torrada cair e, maravilhada, notou que ela não caiu com o lado da manteiga para baixo! O rabino a desencantou: — Ingênua Sara, você apenas passou a manteiga do lado errado.
PAULO DELGADO, sociólogo