Paulo Delgado
Paulo Delgado

As cadeira rasgadas da ONU

Talvez tenham sido deixadas assim até mesmo para "fazer tipo", já que, de fato, a onu enfrenta, no momento, um corte orçamentário de 500 milhões de dólares

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O século 21 é um século que já nasceu velho, como mobília maltratada, sem grandeza ou textura. Quem chega ao hall da Assembleia Geral na sede das Nações Unidas (ONU) em Nova York, os painéis “Guerra e Paz”, do artista brasileiro Cândido Portinari, pairam como uma admoestação aos líderes mundiais que anualmente se encontram ali sobre a importância da transformação da guerra em paz.

Quando os painéis de Portinari foram inaugurados na ONU, o secretário-geral da entidade era Dag Hammarskjöld, um entusiasta declarado da monumental obra doada à ONU pelo Brasil. A obra teve início durante o último e único governo democrático de Getúlio Vargas, sendo entregue no governo de Juscelino Kubitschek, marcado pelo otimismo sobre a capacidade humana de progredir com elegância.

Curiosamente, Portinari não pôde acompanhar a instalação de sua própria obra na ONU, por uma mesquinha deselegância. À época, teve o visto de entrada nos Estados Unidos negado em razão das posições políticas que lhe eram associadas e que, naqueles anos 1950 marcados pelo autoritarismo paranoico do macarthismo nos EUA, eram alvo de perseguição sistemática.

O exuberante sueco Hammarskjöld, que viria a receber o Prêmio Nobel da Paz postumamente, após morrer num suspeito acidente de avião em 1961 no continente africano, dizia que “a ONU não foi criada para levar a humanidade ao paraíso, mas para salvar a humanidade do inferno”.

Pois bem, se tal for mesmo a missão da ONU, a entidade passa por um período triste e sombrio, sem muitas condições de ajudar a humanidade. Nessa Assembleia Geral, no final de setembro, marcando os 80 anos das Nações Unidas, era visível o estado bastante puído ou rasgado das cadeiras no plenário de sua sede em Nova York, claro sinal da má-conservação da entidade, mesmo em seus aspectos mais banais.

Talvez tenham sido deixadas assim até mesmo para “fazer tipo”, já que, de fato, a ONU enfrenta, no momento, um corte orçamentário de 500 milhões de dólares. O qual levará ao fechamento de cerca de 20% dos postos de trabalho, após a forte redução no financiamento dos EUA. De todo modo, como demonstra a proposta orçamentária para a redução de pessoal, e seguindo o padrão das elites do holerite que mandam no caixa dos Estados atuais, os cortes da ONU para 2026 poupam os volumosos e improdutivos escalões mais altos, que permanecem muito bem remunerados — inclusive para os padrões nova-iorquinos.

Talvez outros países pudessem cobrir essa negligência financeira dos EUA para com a ONU. Todavia, é difícil vislumbrar isso acontecendo nos moldes atuais do Sistema ONU. Afinal, sediar a ONU em Nova York — além de algumas das principais agências especializadas do Sistema, como é o caso do Banco Mundial em Washington — é apenas um dos vários privilégios que os EUA detêm dentro desse organismo multilateral desde sua fundação.

A contrapartida, mais ou menos óbvia, é a de que pagaria mais por isso. Apesar de que o enfraquecimento da ONU já vem de décadas, em parte pela resistência em reformar a instituição, em parte pelo boicote que seus principais atores fazem do órgão — não apenas os EUA —, nos anos mais recentes a ONU deixou de estar ou ser protagonista dos principais eventos globais. Isso é uma novidade preocupante. Por culpa dos “sócios” da ONU.

Em artigo recente publicado no Financial Times, de Londres, um dos editores do jornal, Alec Russell, em parceria com uma jornalista do Washington Post, Abigail Hauslohner, focada em assuntos de Segurança Nacional na capital estadunidense, se perguntaram se a ONU poderia se salvar da irrelevância.

Os dois citam conversas com Mark Malloch-Brown, um influente político inglês que esteve por vários anos à frente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), também sediado em Nova York. Para Malloch-Brown, “de muitas maneiras, a ONU é um morto-vivo, que nunca chega a cair totalmente, mas ainda assim é um cadáver”.

Como muitos outros observadores, Malloch-Brown aponta que a ONU ainda poderia desempenhar um papel vital no mundo e que, no momento, o mais relevante para a sustentação do organismo é o fato de a China e outras potências emergentes estarem buscando exercer um papel de liderança à medida que os EUA se afastam, deslocando o foco da ação do paralisado Conselho de Segurança para a Assembleia Geral.

De todo modo, é difícil acreditar que o Sistema ONU siga em sua missão de salvar a humanidade do tumulto crescente sem mudar a mentalidade egoísta dos seus estados-membros. E isso passa, inclusive, por uma melhor distribuição geográfica de suas sedes e locais de encontro, que não podem ficar às expensas dos humores do país anfitrião.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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