Todo fim de ano fazemos um balanço. Parece natural fechar um ciclo para que venha outro. A formalização do tempo nos condiciona a essa organização. Com o Natal e a virada do calendário, muitas emoções são despertadas pelos reencontros com amigos, colegas e familiares. Nem sempre no espírito de celebração, mas embarcamos, e vamos.


Essas ocasiões em que voltamos no tempo, nos afetos e desafetos, alegrias e tristezas, até mesmo os traumas retornam. Muitas são as comoções que afetam quem tem família e a quem não tem. Para esses, precisamos enfatizar que a única coisa que não se pode perder é a si mesmo e seu desejo. Nem sempre em família a alegria é garantida, pode até ser o contrário. Incômodos retornos vazam amarguras de marcantes vivências. Mas é hora de aproveitar o que é bom.


Pensemos nos que não têm famílias, seja porque as perderam, se afastaram ou as evitam. As coisas não são o que aparentam. Exemplo recente: saindo de um procedimento hospitalar, me deparo com uma mulher que se ajoelha na minha frente, com as mãos postas, e já ia falar, quando acenei para que se levantasse e retirei da bolsa uma nota solta que encontrei e doei. Ela saiu rápida como um raio.


Uma senhora que assistia à cena comentou trabalhar com moradores de rua e a maioria deles recebe auxílio de R$ 800 e têm família. E que nada adianta levar para o abrigo porque eles não gostam e preferem as ruas. Ela disse trabalhar com eles e que não ficam onde há regras, limites e restrições. Nas ruas, são livres de tudo. De trabalho, de compromisso, de responsabilidades e ainda são atendidos com distribuição de comida, cobertas, roupas, logo abandonadas na rua.

'Rosa sessions', projeto ao vivo de Samuel Rosa, está no YouTube


Generalizar ou simplificar assim essa escolha pelo desabrigo não resolve a questão de um real que não tem solução cabal. Cada um é um e nunca saberemos seus motivos. Quando mudei para onde moro, um mendigo morava na rua, debaixo de uma marquise. Os moradores da rua doavam comida, colchão, cobertas e roupas. Ele não olhava nem incomodava os passantes.


O problema era de noite. Bastava escurecer e ele se agitava, colocando-se na esquina entre duas ruas e, visivelmente delirante e alucinado, vendo inimigos invadindo seu território, os expulsava aos berros. Difícil dormir ouvindo seus gritos por horas a fio.


Tentei várias formas de serviços públicos de saúde e assistência social, solicitando alguma proteção, pois ele, insano, poderia ser atropelado nesse cruzamento perigoso. Os carros desciam à toda velocidade. Não obtive auxílio nem do Cersam, nem Fhemig, Samu ou prefeitura. De fato, ele foi atropelado. E só assim o Samu veio recolher o acidentado, que quebrou o tornozelo e não conseguia se mover.


Anos depois, estava em aula na universidade, quando contei esse episódio aos alunos e uma aluna disse conhecer o caso, pois era da equipe de cuidado aos moradores de rua. Ninguém me indicou essa equipe quando procurava solução. Ela disse seu nome, ele era bombeiro aposentado, foi dado como desaparecido pela família. Foi medicado, saiu do surto, foi reinserido na família. Nunca mais voltou. Fiquei muito alegre em saber essa boa notícia. Nem sei porque me lembrei disso hoje, são as tais reminiscências...

Estudo mostra que letras das músicas estão cada vez mais pessimistas


Fim de ano é assim... sensíveis, pensamos nessas pessoas, sua história vivendo à margem da sociedade e sofrendo abandonos, perdas e extrema miséria. Não podemos resolver esse problema que vai além do que a iniciativa individual possa.

Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia


Independentemente da doença mental, da escolha, ou por qual motivo que seja, é difícil esse real da carência, do desamparo, da miséria humana, de danos e perdas. Mesmo nós, as sentimos e sofremos.
Faltas existem sempre, porém, não podem faltar, porque delas surgem o desejo, e sem desejo a vida não vale à pena. Desejo aos leitores um bom Natal! E muitos desejos realizados.

compartilhe