
Dor persistente: quando o cérebro não desliga o alerta
Como ortopedista, vejo diariamente pacientes com exames normais e sofrimento intenso
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A dor é uma das experiências mais universais e, ao mesmo tempo, mais complexas da existência humana. Todos já sentiram dor em algum momento — uma torção, uma fratura, uma cirurgia, uma inflamação. Na maioria das vezes, ela aparece, cumpre seu papel de aviso e desaparece quando o corpo se recupera. Mas há situações em que isso não acontece. O tecido já cicatrizou, os exames estão normais, o médico diz que está tudo bem — e, ainda assim, o paciente continua sentindo dor.
Essa é a realidade de milhões de pessoas que convivem com a chamada dor persistente. Entender esse fenômeno é um dos maiores desafios da medicina contemporânea e, curiosamente, uma das áreas em que mais se tem avançado nas últimas décadas.
O cérebro como central de dor
Durante muito tempo, acreditou-se que a dor era um fenômeno puramente mecânico: um estímulo nocivo gerava um sinal elétrico que viajava até o cérebro e, quanto maior o dano, maior a dor. Hoje sabemos que é bem mais complexo.
A dor não é gerada apenas pelo tecido lesionado — ela é interpretada e modulada pelo sistema nervoso central. Em outras palavras: o cérebro não é apenas o destino da dor, mas também o seu filtro e amplificador.
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Em condições normais, esse sistema funciona de forma extraordinária. Um corte na pele, por exemplo, ativa receptores de dor chamados nociceptores, que enviam mensagens elétricas através da medula espinhal até o córtex cerebral. O cérebro, então, interpreta o sinal e desencadeia uma resposta de proteção: afastar o corpo da fonte de agressão, contrair a musculatura, liberar substâncias inflamatórias que ajudam na cicatrização.
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Quando o tecido se recupera, o sistema tende a “baixar o volume” da dor. Mas em algumas pessoas, esse processo de desativação falha.
Quando o sistema fica em loop
Esse fenômeno é conhecido como sensibilização central. Trata-se de uma espécie de “memória da dor”, na qual as vias nervosas que processam o desconforto permanecem hiperativas, mesmo depois da resolução da lesão inicial.
A dor, então, deixa de ter um papel protetor e passa a ser uma doença em si. Essa alteração está presente em condições como fibromialgia, síndrome dolorosa regional complexa, dor lombar crônica, artralgia pós-traumática e até em quadros pós-cirúrgicos. Em muitos casos, a própria experiência prolongada de dor vai remodelando o sistema nervoso, reforçando o ciclo.
É como se o cérebro criasse “atalhos” de dor — conexões neuronais que se tornam mais rápidas e automáticas. O resultado é um corpo que se comporta como se ainda estivesse machucado, mesmo sem lesão física.
Dor não é fraqueza — é biologia
Infelizmente, muitas pessoas com dor persistente ou crônica sofrem duplamente: pela dor em si e pela falta de compreensão. Ainda é comum ouvir frases como “isso é psicológico”, “é frescura” ou “está tudo normal, é só seguir a vida”.
Mas a ciência já demonstrou que a dor é uma experiência real, mesmo quando o exame está normal. O que muda é o local de origem: em vez de estar no osso, no músculo ou no tendão, ela passa a estar nas conexões cerebrais.
Estudos com ressonância funcional do cérebro mostraram que pessoas com dor crônica apresentam ativação persistente de áreas relacionadas ao medo, à ansiedade e à memória. O sistema nervoso permanece em estado de alerta, como se esperasse uma nova agressão a qualquer momento.
Isso explica por que o estresse emocional, o sono ruim e até problemas de humor podem amplificar a dor — todos esses fatores influenciam diretamente o processamento cerebral do desconforto. Não é imaginação: é neurofisiologia.
O desafio clínico: tratar o corpo e o cérebro
Do ponto de vista médico, tratar dor persistente exige uma abordagem integrada. A chave é a abordagem multimodal:
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Uso criterioso de medicamentos que modulam o sistema nervoso (como antidepressivos tricíclicos e anticonvulsivantes em baixas doses)
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Suporte psicológico e terapia cognitiva
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Fisioterapia ativa, baseada em movimento e exposição gradual
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Melhora do sono e manejo do estresse
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E, sobretudo, educação em dor — explicar para o paciente o que está acontecendo no seu corpo e mente
Quando o paciente entende que a dor não é sinal de destruição, mas de hipersensibilidade, ele volta a se movimentar com segurança — e é justamente o movimento que ajuda o sistema a se reequilibrar.
Dor não é destino
A boa notícia é que dor persistente não significa dor eterna. Cada pequena melhora é uma vitória. Dormir melhor, retomar uma caminhada curta, sair de casa sem medo. O caminho pode ser longo, mas ele é possível. E talvez o passo mais importante seja mudar o olhar: parar de ver a dor como inimiga e passar a enxergá-la como uma informação — algo que o corpo pode, aos poucos, reinterpretar.
A medicina da empatia
Como ortopedista, vejo diariamente pacientes com exames normais e sofrimento intenso. E a primeira missão não é “curar” — é validar. Mostrar que o problema é real, mesmo quando invisível. A medicina precisa resgatar esse olhar. A dor persistente é um lembrete de que o ser humano é mais do que estrutura e função — é emoção, memória e significado.
Cuidar de alguém com dor crônica é, no fundo, um exercício de humanidade. É ajudar o corpo a se curar e, ao mesmo tempo, ensinar o cérebro a confiar novamente.
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