Muito antes dos coquetéis surgirem, já se fermentava. Vinho, cerveja, sidra, hidromel. Bebidas ancestrais que acompanharam o homem ao longo da história como sustento, símbolo e celebração. Beber fermentados é, de certa forma, provar o tempo.
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O vinho fermentava nas talhas de barro dos gregos muito antes de qualquer noção de terroir. A cerveja, quase um pão líquido, já fazia parte da vida egípcia nas épocas das pirâmides. O saquê ocupava lugar sagrado nos rituais japoneses. Não nasceram da técnica, mas da espera, da chance e da sensibilidade. Foram moeda, medicina, oferenda e comunhão. E, mais tarde, fundamento: a cachaça vem da fermentação da cana; o uísque, do cereal maltado; o conhaque, do vinho. Todo destilado, no fundo, é um fermentado levado ao extremo.
Com o tempo, os fermentados foram sendo empurrados para a lateral do balcão. Ganharam papéis secundários: um vermute aqui, um top de espumante ali. A mixologia moderna, com seus aparatos técnicos, pareceu deixar pouco espaço para aquilo que se faz com tempo, não com fogo.
Mas há beleza em resgatar o que parecia óbvio demais. Há grandeza nos coquetéis que sabem reconhecer os fermentados como protagonistas. O French 75, por exemplo, é um clássico que não esconde o espumante, o celebra.
Criado durante a Primeira Guerra Mundial, mistura gim, suco de limão, xarope simples e espumante brut. O nome homenageia um canhão francês da época. É delicado, mas direto. Eis a receita:
French 75
- 30ml de gim
- 15ml de suco de limão siciliano
- 15ml de xarope de açúcar
- Complete com espumante brut (cerca de 60ml ou 75 ml)
- Agite os três primeiros ingredientes com gelo, coe em taça flute, complete com o espumante e finalize com um zest de limão siciliano.
No filme “Casablanca” e na série “Downton Abbey”, ele aparece como símbolo de elegância. Mas sua sofisticação não está na complexidade, está na clareza.
Tenho que confessar que sou um inveterado fã da cerveja. Ando cada vez mais mergulhado na coquetelaria latino-americana, talvez por medo de ser taxado pelo Trump ao utilizar alguma receita yankee. Brincadeiras à parte, o jeito como a América Latina, especialmente o México, utiliza a cerveja em drinks é de tirar o chapéu ou o sombreiro.
Hoje, a maré voltou. Mais bartenders redescobrem os fermentados, não apenas os clássicos, mas os novos, vivos e imprevisíveis. Kombuchas, tepaches, kefir, ginger beers. Fermentados artesanais, muitas vezes espontâneos, que trazem acidez própria, gás natural, textura e uma dose de risco.
Um bom ginger ale feito com fermentação natural pode transformar um highball, oferecendo picância, acidez e efervescência reais. Eles não são substitutos de refrigerantes, são ingredientes à altura da criação. Não são ingredientes neutros. São organismos. Trabalhar com eles exige escuta, não imposição.
Na coquetelaria, os fermentados oferecem o que destilados nem sempre entregam: nuances. Vivacidade. Uma sensação de frescor natural que não se alcança com infusores ou centrífugas. São uma lembrança de que o sabor pode ser uma construção lenta e, talvez por isso, mais interessante.
Mais do que moda, usar fermentados é uma reconexão com o que a bebida sempre foi: transformação. Não uma invenção mirabolante, mas um processo natural. No fundo, o que eles oferecem não é apenas sabor. É história, tempo e humanidade no copo.
E, às vezes, é disso que o paladar mais precisa: menos potência, mais verdade.