
Escolher o pior
Porque, no fundo, não vivemos apenas para prolongar nossa existência, mas para dotá-la de sentido
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Outro dia uma amiga me contou sobre a doença do pai, mas o que me surpreendeu não foi exatamente a gravidade do diagnóstico e sim a maneira como ela creditava toda a culpa pela patologia ao fato dele não ter cuidado da saúde da maneira como ela considerava ser a mais correta.
Com precisão quase contábil, ela começou a listar uma infinidade de atitudes do pai que teriam evitado o aparecimento da doença aos 70 anos de idade, tal como o hábito do exercício, a alimentação regrada ou exames mais regulares.
Ouvindo minha interlocutora percebi que por trás daquela fala havia uma suposição natural de que todos nós deveríamos agir em direção daquilo que parece ser mais vantajoso, e que, quando não o fazemos, estamos cometendo um erro objetivo. Acho que é uma crença muito comum a de que a lógica humana funciona do mesmo modo que a lógica das calculadoras: sempre somando ganhos e subtraindo perdas para quem sabe, conseguir maximizar o resultado.
Mas será que somos mesmo assim? Será que, diante de uma escolha, somos sempre guiados por aquilo que nos seria mais vantajoso?
Em seu livro 'Memórias do Subsolo', Dostoievsky descreve um personagem singular, o homem do subsolo, cujo objetivo é exatamente desfazer essa noção de que o ser humano sempre escolhe aquilo que lhe é mais vantajoso. Ele chega a afirmar que o ser humano não apenas nem sempre escolhe o que é melhor para si, mas que ele, muitas vezes, deliberadamente, escolhe o pior.
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O que parece ser uma aparente irracionalidade é, para o homem do subsolo, uma demonstração de liberdade pois, segundo acredita, se fôssemos sempre conduzidos pela lei da vantagem não seríamos mais que engrenagens previsíveis. A possibilidade de agir contra o próprio interesse seria, em muitos contextos, um gesto de afirmação da própria vontade.
O argumento do homem do subsolo não parece ser apenas literário e basta olhar para o lado para comprovar. Há quem fume por décadas, mesmo sabendo dos riscos de um câncer de pulmão. Há ainda aqueles que não se exercitam, apesar de saberem dos benefícios que atividades físicas trazem para a saúde. Há, por fim, quem prefira um torresmo e uma cerveja a uma salada acompanhada de suco de frutas. Essas decisões podem parecer irracionais para aqueles que olham de fora, no entanto, para quem as toma, provavelmente carregam um sentido interno que vai muito além de cálculos entre custos e benefícios.
E se, em algum nível, consciente ou não, o pai da minha amiga escolheu viver com uma certa despreocupação em relação à sua saúde porque, para ele, essa era a vida que valia a pena? Talvez não se tratasse de ignorância sobre o que é saudável, mas de uma decisão de não sacrificar prazeres e rotinas que ele considerava imprescindíveis para o seu bem-estar em nome de uma vida espartana que não o satisfaria. Talvez, para ele, os custos a serem pagos fossem aceitáveis dentro da sua escala de valores e parece não haver sentido ficarmos culpando alguém por escolhas que lhe eram essenciais, ainda que não compreendamos as razões. Ao analisarmos desse modo, conseguimos não apenas não julgar as pequenas escolhas irracionais das pessoas, mas também amparar quando for necessário.
A verdade é que, se formos bem honestos, também nós fazemos, em diferentes áreas da vida, nossas pequenas escolhas irracionais: desperdiçamos tempo com atividades inúteis, dormimos menos que o necessário e nos perdemos em discussões que nos trazem muito pouco.
E por qual razão fazemos isso? Talvez porque, no fundo, não vivemos apenas para prolongar nossa existência, mas para dotá-la de sentido. Como o homem do subsolo de Dostoievsky, intuímos que ser livre não é apenas buscar o que nos convém, pois há momentos em que sacrificar a vantagem é o único modo de sermos autênticos autores de nossas vidas.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.