Creio haver um grande significado moral e espiritual em uma frase comumente atribuída a Tolstói, que diz algo como: “Há quem passe por um bosque e veja apenas lenha para a fogueira”. Vocês já notaram que há pessoas que são incapazes de perceber a beleza, a profundidade e o mistério do mundo que as cerca?


Parecem viver na porção mais rasa da vida, reclamando da sorte ou atribuindo todo o propósito da existência a ser produtivo, ficar rico ou qualquer outra coisa que lhes distraia da difícil tarefa de compreender a si e ao mundo. Para elas, o bosque, que poderia representar transcendência e vida, é percebido como algo que comporta somente uma dimensão funcional, assim como, muitas vezes, suas próprias vidas.


Não se nega a porção funcional da floresta – e, em última instância, também da vida -, mas reduzir toda a interpretação da realidade a tal aspecto, parece ser uma inaceitável diminuição do valor intrínseco das coisas. Há um simbolismo presente na realidade que, uma vez ignorado, faz com que a experiência humana se torne miseravelmente reduzida.


Para se estar vivo de verdade é preciso se estar aberto o suficiente para perceber o milagre que existe em cada um dos dias comuns. E para perceber o quão mágico é cada um desses dias, é preciso se espantar todas as vezes que se reflete verdadeiramente sobre o simples fato de estarmos vivos, em um planeta que nos gera, nos deixa viver e nos acolhe no final, sem que exista nenhuma explicação científica e racionalmente verificável sobre o propósito de tudo isso.


Mas estamos tão submersos em nossos afazeres cotidianos que deixamos de perceber que o milagre acontece a todos os instantes. E isso ocorre porque passamos a conceber a realidade e a vida simplesmente como “lenha para a fogueira”, sem nos apercebermos do enorme valor simbólico que elas comportam.

 

Não temos mais tempo para refletir e preferimos pensar em como otimizar tempo e obter resultados. Mas isso é problemático, e Dostoievski nos sugere, em “Os Irmãos Karamázov”, que há uma espécie de miséria, decorrente não da ausência de bens, mas da recusa do sujeito de olhar para si mesmo e para o mundo com profundidade e honestidade. Há no livro a sugestão de que a capacidade de contemplar e interpretar a realidade decorre de uma espécie de refinamento do olhar, que demanda que visualizemos além daquilo que nos salta os olhos.


Assim, é tarefa humana educar sua percepção para que consiga ver um pouco além daquilo que parece óbvio. E isso exige a consciência de que, ver apenas lenha quando se está diante da grandiosidade da natureza, representa não apenas um erro de percepção, mas também, e principalmente, uma escolha moral.


O risco dessa escolha é que, quando reduzimos a realidade à sua dimensão funcional, passamos a acreditar que nada merece ser percebido como valioso, ou seja, dotado de uma porção intangível, incapaz de ser avaliado em termos quantificáveis. E, como ninguém olha o mundo de um modo e as pessoas de outro, essa redução inevitavelmente acaba contaminando nossas relações pessoais, inclusive as mais íntimas: esperamos resultado, eficácia e desempenho.


Nesse contexto, aquilo que, à princípio, valia apenas para florestas passa a ser os óculos com os quais interpretamos toda a realidade. O problema é que quando reduzimos a vida e o mundo circundante à sua dimensão funcional, deixamos de perceber o valor intrínseco da existência, o milagre do cotidiano e as incontáveis possibilidades que se abrem para aqueles que conseguem dimensionar de modo correto suas reais necessidades diante da vida.


Sem dúvida, a floresta pode ser entendida como lenha para a fogueira em algumas situações, mas jamais se pode negar sua dimensão mágica e simbólica, únicas capazes de verdadeiramente significar de modo autêntico a experiência humana.

 

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