O que as palavras do ano dizem sobre nós?
"Rage bait" e "parassocial" expõem como raiva e intimidade unilateral moldam nossa vida digital e revelam um cansaço emocional coletivo
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Quando duas palavras tão diferentes quanto “rage bait” e “parassocial” ganham o título de palavra do ano, algo importante está sendo dito sobre o nosso tempo. Em 2025, os dicionários Oxford e Cambridge enxergaram sintomas que apontam para um mesmo mal-estar: estamos exaustos, hiperconectados e, paradoxalmente, mais sozinhos do que nunca. Todos os anos, os dicionários elegem um termo para sintetizar movimentos culturais. Desta vez, a Oxford coroou “rage bait”, conteúdos feitos para provocar raiva e inflamar o engajamento imediato. Já a Cambridge escolheu “parassocial”, para nomear vínculos emocionais unilaterais com celebridades, influenciadores e até inteligências artificiais. Duas escolhas que, lado a lado, formam um diagnóstico nada confortável.
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O dicionário como espelho da cultura
Essas palavras não são curiosidades linguísticas. Funcionam como um check-up do estado emocional da vida digital. Quando “rage bait” e “parassocial” sobem ao pódio, fica evidente que a arena pública está ancorada em emoções extremas e intimidades assimétricas. O dicionário dá nome àquilo que sentimos e muitas vezes não conseguimos articular.
Rage bait: quando o ódio paga a conta
“Rage bait” é o conteúdo planejado para irritar, polarizar e lançar pessoas em conflito. E há exemplos perfeitos dessa engenharia emocional: a febre dos debates fabricados como “30 empregados x 1 patrão” ou “1 feminista x 30 conservadoras”, montados para despertar indignação instantânea. O “rage click” é o gesto que completa o circuito, aquele impulso de abrir o vídeo só para conferir se é verdade, para refutar alguém ou deixar um comentário indignado. Na economia da atenção, esses cliques são ouro. Mais raiva gera mais tempo de tela; mais tempo de tela gera mais relevância algorítmica; e mais relevância gera dinheiro, influência e visibilidade. O ódio deixa de ser um efeito colateral e passa a ser insumo, integrado à arquitetura das plataformas.
Afetos sequestrados pela lógica do engajamento
Nesse mercado, a emoção vale mais do que a informação. A indignação vira modelo de negócios. O feed se transforma numa espécie de campo de batalha contínuo em que a fronteira entre revolta legítima e indignação fabricada se dissolve. Sem perceber, normalizamos o ressentimento como modo padrão de estar online e passamos a enxergar qualquer divergência como ameaça pessoal.
Parassocial: a intimidade que só existe de um lado
Do outro lado do dicionário, “parassocial” descreve vínculos emocionais sem reciprocidade. Se nos anos 1950 o conceito explicava o apego a apresentadores de TV, hoje ele se estende a influenciadores que expõem cada detalhe do dia a dia e constroem uma imagem de proximidade permanente. Muitas pessoas se sentem íntimas de criadores que jamais saberão nem mesmo o seu nome. Essas relações também aparecem na adoração por influenciadores que compartilham a rotina quase em tempo real, criando uma sensação de convivência contínua. São relações confortáveis porque exigem pouco: não há conflito nem contradição. Mas também não há diálogo. É intimidade artificial, sob demanda de quem nem percebe que está sozinho.
Intimidade unilateral em um tempo de solidão
Pesquisas mostram que vínculos parassociais podem aliviar rejeição e oferecer conforto emocional, mas alertam para um risco: quando substituem relações reais, aprofundam a sensação de isolamento. Não é coincidência que esse termo tenha emergido com força em um momento de epidemia de solidão global. Quanto mais tempo passamos atentos a quem não nos conhece, menos energia sobra para nutrir os vínculos que nos sustentam fora da tela.
O feed como batalha de afetos
Colocar “rage bait” e “parassocial” lado a lado revela um feed dividido entre dois extremos: o conteúdo que nos enfurece e a figura pública que traz sensação de acolhimento. Nenhum deles necessariamente nos conhece, mas andam juntos em uma economia que recompensa tanto a polarização quanto a ilusão de intimidade. Os incentivos das plataformas moldam nossos afetos mais do que percebemos, muitas vezes mais do que gostaríamos.
Para onde direcionamos nosso olhar?
Essas palavras do ano funcionam como alerta. Será que não estamos passando tempo demais na tela e entregando nossas emoções para uma lógica que não controlamos? E se regularmos o impulso do rage click? Respirar antes de interagir com conteúdos que só querem inflamar. Perguntar se aquilo informa ou apenas provoca. Evitar recompensar o engajamento que transforma ódio em produto. Vale também colocar as relações parassociais em seu devido lugar. Elas podem nos entreter, mas não substituem a rede de apoio que só acontece com a convivência real, nas interações com a família, amigos, colegas e vizinhos. Relações sociais de verdade, com reciprocidade.
É hora de participarmos de espaços que propiciem vínculos com quem possamos ter trocas genuínas. Precisamos de presença, não só performance. São as pessoas próximas de nós que vão segurar a onda quando a fórmula do algoritmo mudar. E ela sempre muda. No fim, “rage bait” e “parassocial” não descrevem apenas comportamentos. Descrevem uma encruzilhada. Podemos continuar clicando no que nos enfurece ou nos afaga artificialmente. Ou podemos assumir a agência de nossas escolhas, pesquisando conteúdos que ampliam nosso repertório e investindo tempo nas relações que existem para além das telas.
As palavras do ano apontam o problema. Cabe a cada um de nós escolher o que fazer com este diagnóstico para intencionalmente construir um jeito de viver mais saudável.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
