
Livro de Miguel de Almeida analisa subversão libertária do Secos e Molhados
"Primavera nos dentes" mostra que impacto do trio que desafiou a ditadura ainda ecoa no Brasil. Autor é o novo colunista do Estado de Minas às segundas-feiras
compartilhe
Siga noO ano era 1973, fim do governo do general Emílio Garrastazu Médici. A resistência à ditadura havia aumentado e a tortura passou a ser usada como método “legítimo” para eliminar e neutralizar qualquer forma de oposição ao governo. Nessa época, registraram-se os maiores índices de violações aos direitos humanos no país. Qualquer ato entendido como transgressão à moral e aos bons costumes poderia levar o cidadão para a prisão – muito possivelmente, ao pau-de-arara.
Em meio a tudo isso, uma cena insólita ocorria com frequência no prédio onde funcionava o departamento de censura em São Paulo: Ney Matogrosso, Gerson Conrad e João Ricardo, extremamente desconfortáveis, com rostos pintados, roupas extravagantes e peitos nus, apresentavam-se para uns poucos militares, encarregados de avaliar se aquela performance poderia entrar em cartaz na cidade.
A cena, por si só, é bizarra. Fica mais bizarra ainda porque os militares aproveitavam os “shows particulares” do Secos e Molhados para levar mães, avós, filhos e esposas para ver Ney Matogrosso cantar.
“Naquela época, a banda estava em tudo quanto é rádio e programa de TV. Eles eram amados pelas crianças e, principalmente, pelas mulheres. Era como se aquela dança, o gestual e a presença de palco, sobretudo do Ney, despertassem uma espécie de libido”, lembra o jornalista e escritor Miguel de Almeida.
Com a ousadia de sua arte, Gerson Conrad, Ney Matogrosso e João Ricardo driblaram a censura e a opressão
Revolução cultural
É dele o livro “Primavera nos dentes – A história dos Secos & Molhados”, lançado em 2019, que recentemente ganhou nova edição pela Record. Mais que biógrafo, revelando curiosidades e casos inusitados, o autor mostra como se dava a vida cultural no contexto político marcado por intensa repressão, tendo a banda como pano de fundo.
“Sempre achei que o Secos e Molhados seria um excelente instrumento para isso”, diz o jornalista. “Queria entender aquela reação cultural potente que, na verdade, vinha ocorrendo desde meados dos anos 1960, sob a ditadura militar muito severa. Queria contar como os artistas enfrentaram o momento de falta de liberdade, de censura e de perseguição política com suas criações e, ao mesmo tempo, mostrar que havia forte renovação cultural com reflexos no comportamento, coisa que jamais tinha ocorrido no Brasil até então”, emenda.
16/12/2023 - 04:00 Polêmica nos sets de Minas Gerais 16/12/2023 - 04:00 Concerto reúne 14 Bis, Toninho Horta, Eliseth Gomes e corais na Pampulha 17/12/2023 - 04:00 Série "The Chosen – Os escolhidos" estreia segunda (18/12), no SBT/Alterosa
Mesmo com vida breve – Secos e Molhados durou de 1973 a 1974 –, a banda deixou legado que ecoa até hoje. Se as músicas marcaram uma geração, o grupo teve importante papel político, peitando a ditadura com sagacidade e jogando sua luz libertária sobre questões de gênero. “Mas os milicos não perceberam isso”, observa Miguel de Almeida.
Aquele enfrentamento ao regime era muito inteligente, aponta o jornalista. “A começar pelas músicas. Para driblar a censura, eles musicaram poemas de Vinicius de Moraes, Oswald de Andrade e Solano Trindade, publicados antes do golpe de 1964. Então, não tinha como os militares garantirem que as canções eram críticas ao regime.”
Desde o início, a banda tinha tudo para dar errado. As primeiras rusgas surgiram já no álbum de estreia, quando o baterista Marcelo Frias não quis pintar o rosto. Ele é o único sem maquiagem na icônica capa que traz as cabeças dos músicos servidas em bandejas numa espécie de banquete antropofágico. Frias participou do segundo disco apenas como músico contratado.
O conflito que levou ao fim envolveu dinheiro. Ney Matogrosso ganhava menos por ser intérprete. A maior fatia ficava com João Ricardo, pelos direitos autorais, e seu pai, João Apolinário, empresário da banda.
Ney só recebia pela participação nos shows, ao contrário do acordo inicial de dividir os ganhos entre ele, João, Conrad e Moracy do Val, espécie de agente da banda demitido por João.
“E olha que eles venderam muito”, ressalta Miguel. “Naquela época, venderam 1 milhão de cópias. É como se cada família brasileira tivesse um disco deles.”
O Secos e Molhados, diz Miguel, foi a “mosca na sopa” dos militares. Quando os generais se deram conta da proposta da banda, a popularidade conquistada pelo trio era enorme – e os três já haviam se separado.
Miguel às segundas no EM
Nesta segunda-feira (18/12), Miguel de Almeida estreia como colunista do Estado de Minas. Em artigos publicados quinzenalmente na editoria de Política, o jornalista e escritor abordará fatos da política sob o viés cultural.
“Geralmente, para os textos que publico em colunas, procuro misturar essa coisa da política com a cultura. Acho que a cultura traz uma implicação sobre o homem, sobre o comportamento do homem e sobre a liberdade do homem. Isso daí é política”, afirma.
“PRIMAVERA NOS DENTES – A HISTÓRIA DOS SECOS & MOLHADOS”
• De Miguel de Almeida
• Editora Record
• 376 páginas
• R$ 79,90