Quando leu pela primeira vez o roteiro de “Vou fazer de mim um mundo”, a atriz Zezé Motta não conteve as lágrimas. Com mais de cem personagens no currículo e quase 60 anos de carreira, hesitou: “Me questionei se eu faria a peça, se eu ia dar conta”, conta.


A montagem é uma adaptação de “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola”, autobiografia de Maya Angelou (1928-2014), escritora, poeta e ativista que se tornou uma das principais vozes da literatura norte-americana do século 20.


Publicado em 1969, o livro causou um abalo imediato no cenário literário dos Estados Unidos, entrou na lista de mais vendidos do “New York Times” e transformou Angelou em uma celebridade internacional.


Neste ano, a obra voltou a ser debatida, depois de ser incluída entre os 381 livros banidos da biblioteca da Academia Naval dos EUA pelo governo Trump. A decisão fez parte de uma política de restrição a conteúdos sobre raça, gênero e sexualidade em instituições federais do país.


“Emocionante”

Prestes a completar 81 anos (no próximo dia 27) Zezé Motta vive um reencontro com o teatro após mais de uma década longe dos palcos. A peça que estreia neste sábado (21/6) em Belo Horizonte, onde fica em cartaz até 14 de julho, já passou por Brasília e tem temporadas marcadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. É também o primeiro monólogo da carreira da atriz.


“A experiência tem sido muito emocionante”, afirma a atriz. “Eu tinha um desejo de, ao completar 80 anos, fazer algo forte, importante. Encontrei isso na Maya Angelou. É impactante.”


Atriz, cantora e ativista, Zezé conta que certas emoções só o palco é capaz de despertar. “É uma emoção diferente de todas as outras formas de atuação. O contato com o público, o ritual de ir até o teatro, entrar no camarim... Nenhum dia é igual ao outro, a plateia é sempre diferente”, comenta. “A cada sessão você descobre algo novo na peça, no texto. Eu adoro esse ritual.”


Ao contar sua história a partir da experiência negra, Maya Angelou queria ser lida de forma ampla. Como ela mesma dizia, por meninas negras, mas também por mulheres chinesas, meninos judeus e por qualquer um que já tenha vivido alguma forma de opressão. A dimensão universal também se encontra com a trajetória de Zezé Motta.


“Se você levantar a história de mulheres negras do mundo inteiro, vai encontrar vivências parecidas, relatos comuns em termos de dor e prazer”, observa. “Nós duas temos a mesma garra, a mesma perseverança. Tenho esse jeito calmo, mas sou guerreira”, afirma.


Diretor da peça, Elissandro de Aquino também se surpreendeu com os paralelos. “É curioso como essas histórias se atravessam o tempo todo. Não foi algo planejado, não tínhamos controle sobre isso”, diz.


A peça foca na infância da autora, até os 12 anos de idade, enquanto o livro acompanha sua história até os 16. Para Elissandro, isso não diminui a força do texto. “Ouvimos com frequência do público o comentário de que a peça é muito fidedigna ao livro”, afirma.


A infância de Maya Angelou foi marcada por traumas profundos. Vivendo o periodo de segregação racial nos Estados Unidos, aos 8 anos foi abusada pelo parceiro da mãe. Depois que ela o denunciou, ele foi preso e morto. Durante a conversa com o Estado de Minas, Zezé manteve um tom leve e alegre. Mas, no palco, o sorriso desaparece.


“Meu sorriso é minha marca e, como atriz, é um grande desafio viver essa contradição”, explica ela, que, quando sorri em cena, é em gesto de ironia. “Acho que nunca vimos a Zezé tão contida em cena, mas a peça pede isso”, acrescenta Elissandro.


O diretor também adaptou para o teatro “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), e “A pequena coreografia do adeus”, de Aline Bei. Ele conta que o desejo de trabalhar com Zezé era antigo. Ela chegou a ser cogitada para interpretar Carolina, mas, por conflitos de agenda, o papel ficou com Cyda Moreno. Anos depois, reencontrou Zezé em um projeto fotográfico e fez o convite para “Vou fazer de mim um mundo”.


“Zezé é uma dama, uma mulher de luz, generosidade e magnetismo. Ela faz tudo com paixão e entrega. Há muito tempo eu não via isso em uma atriz”, elogia Aquino. O título do espetáculo, que difere do original do livro, surgiu por questões de direitos autorais, segundo ele afirma, mas está no texto de Maya. “Gosto muito desse título, porque ele se encaixa lindamente com a história da Zezé, uma mulher que fez da própria vida um mundo”, observa.


Aos 80, Zezé não pensa em parar. “Não garanto chegar aos 100 trabalhando, mas pelo menos até os 95, que foi a idade da minha mãe. Sou fruto de uma pessoa que teve uma vida longeva”, diz. O medo que sentiu no começo, ao se questionar se daria conta do desafio, já ficou para trás.


“Tem sido emocionante ver o público aplaudindo de pé todos os dias”, conta. E, para as mulheres que veem em sua trajetória um exemplo, ela deixa um recado: “Perseverança. Nunca desista do seu sonho”.


“VOU FAZER DE MIM UM MUNDO”
Monólogo com Zezé Motta. Direção: Elissandro de Aquino. Estreia neste sábado (21/6), no CCBB-BH (Praça da Liberdade, 450 - Funcionários). Em cartaz até 14/7. Sessões de sábado a segunda, às 20h. Ingressos a R $30 (inteira) e R$15 (meia), à venda na bilheteria e no site do centro cultural.

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