O número de garrafas de whisky não foi contado diante do estado dos envolvidos, Vinicius de Moraes (1913-1980) e Baden Powell (1937-2000). Amanhecia na casa do primeiro quando este decidiu acordar a mulher. Não faça isso, estamos bebuns, disse o segundo.


Vinicius chamou Lucinha Proença para a sala e pediu para Baden tocar a música que havia composto. Era ou não um plágio de Chopin? Claro que não, respondeu a amante da obra do gênio polonês. Ele não se dobrou: “Então Chopin se esqueceu de fazer essa”.

A história de “Samba em prelúdio” (que o Poetinha letrou depois de convencido do não plágio) é contada com graça por Baden para ilustrar a amizade que os dois mantiveram a partir de 1960. Vinicius, quase 50 anos, era já uma personalidade da cultura brasileira; Baden, com pouco mais de 20, tem um violão personalíssimo e único, mas era um nome pouco conhecido na música. Movidos a cigarro e whisky, estabelecem uma parceria que se traduz em várias canções. Criam também um álbum único.

Com estreia nesta terça-feira (24/6), na Max, o documentário “Os afro-sambas: O Brasil de Baden e Vinicius” recupera a trajetória do disco de 1966 que estabeleceu um gênero na música brasileira. A direção é de Emílio Domingos – que vem documentando a cultura negra por meio dos longas “A batalha do passinho” (2012), “Black Rio! Black Power” (2023) e o inédito “As dores do mundo – Hyldon” (2025) – e a produção da Rinoceronte Entretenimento, a mesma de “Elis & Tom: Só tinha de ser com você” (2022).

“Berimbau”

A história é contada por meio de uma costura com imagens de arquivo e depoimentos de artistas, músicos e jornalistas. O fio condutor são as oito canções do álbum, a partir da célebre “Canto de Ossanha”. A equipe incluiu uma nona música, “Berimbau” (1963), o primeiro afro-samba da dupla e já tão conhecida naquela altura que ficou de fora do disco de 1966.

A equipe ouviu Maria Bethânia, Roberto Menescal, Jards Macalé, Marcus Valle, Cynara Faria (uma das quatro irmãs baianas que formaram o Quarteto em Cy, que gravou o disco com Vinicius e Baden), Dori Caymmi, Nelson Motta, entre outros personagens. Dois jornalistas, Hugo Sukman e Renato Vieira, contextualizam o período. As famílias de Baden (filho e viúva) e de Vinicius (filhas e neta, além da baiana Gessy, a sétima mulher do Poetinha, com quem ele se casou em 1969) também participam do documentário.

Nesta história contada a várias vozes (e rodada em São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro) a narrativa parte da bossa nova, já “velha” em meados dos anos 1960; fala da influência do estudos de canto gregoriano de Moacir Santos, antigo professor de Baden; dos cantos de candomblé que os dois ouviram em gravações de samba de roda; das viagens à capital baiana; e da utilização do som do berimbau na música.

Faixa preferida


Cada convidado escolheu sua faixa preferida do disco. “A audição de uma canção desperta uma série de sensações. Achei que seria uma forma de trazer a memória afetiva. Ao mesmo tempo, a música conecta um personagem com outro e contribui para construir a história do álbum”, comenta Domingos.

Há grandes momentos, como Bethânia contando da relação de Vinicius com Mãe Menininha do Gantois. Foi ele, inclusive, quem apresentou a cantora à maior mãe de santo do Brasil, que se tornou uma influência inegável na vida e na música da intérprete.


Outro destaque vem do emocionado depoimento de Cynara sobre as sessões de gravação. “Ela ficou muito envolvida com a gente, e esta acabou sendo a última entrevista dela, pois Cynara morreu duas semanas depois (em 11 de abril de 2023)”, conta a produtora Renata Leite – o documentário é dedicado à cantora e ao diretor de fotografia Fydel Botti, morto no ano passado.

Lançado pela gravadora Forma, selo de muito prestígio mas poucas vendas que só durou dois anos, “Os afro-sambas de Baden e Vinicius” tem arranjos e regência de Guerra-Peixe. Além do Quarteto em Cy, contou com a participação da cantora Dulce Nunes (em “Tristeza e solidão”) e do “coro da amizade”, uma reunião de vozes femininas, não necessariamente cantoras (a atriz Betty Faria uma delas) concebida por Vinicius para fazer um canto espontâneo, não necessariamente afinado.

“O disco foi gravado em três dias. Só que foram anos de relação antes da gravação, a amizade começa em 1961. Então temos tanto um período pré e pós-disco. O filme não é só sobre os afro-sambas, mas sobre a força musical deste país. Acho que ele mostra o quanto o álbum é essencial para a gente entender a cultura brasileira”, afirma Domingos.

Para fazer essa arqueologia, o pesquisador Antônio Venâncio foi a arquivos públicos e privados. As únicas imagens em movimento de Baden e Vinicius cantando vieram de uma TV francesa. A pesquisa chegou até ao documentário “Bahia, por exemplo” (1969), de Rex Schindler. “Quando a gente estava procurando o arquivo em alta, descobrimos que só havia na Cinemateca da Bahia, ainda na lata. Isso foi já no final da montagem. Tivemos que restaurar o filme”, conta Renata.

Já quando o longa estava sendo finalizado, outra supresa. O Arquivo Nacional disponibilizou uma filmagem de Vinicius, de 1972. O trecho, que aparece no início do filme, mostra o poeta sentado em um meio-fio, falando sobre a importância da cultura afro-brasileira. “Esse é um dos desafios de quando se faz documentários. ‘Abrimos’ o filme de novo para inserir essa imagem”, comenta Renata.

“OS AFRO-SAMBAS: O BRASIL DE BADEN E VINICIUS”
O documentário estreia nesta terça-feira (24/6), na Max

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