Mamélia Dornelles, que morreu sábado, deixa o legado da luta pela cultura
Fundadora do Teatro Experimental, atriz de "Oh! Oh! Oh! Minas Gerais" e diretora de várias peças, ela militou pela arte em BH e São João del-Rei
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Siga noAtriz, diretora, figurinista e produtora cultural, Maria Amélia Dornelles Dângelo morreu sábado (19/7), aos 88 anos, em São João del-Rei. De acordo com amigos, ela teve pneumonia e falência múltipla de órgãos.
Em sua cidade natal, onde vivia ao lado do marido, o escritor e diretor Jota Dângelo, ela se tornou referência na defesa dos direitos das mulheres, da arte popular e do carnaval. Foi inclusive numa folia, mais de 70 anos atrás, que os dois se conheceram.
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“As pessoas que são importantes partem, mas ficam com a gente”, afirmou ela em 2003, em longo depoimento ao programa “Memória e poder”, da TV Assembleia. Pois o nome que fica é Mamélia Dornelles.
“Junta os dois nomes, não coloca o Dângelo, daí você vai ter identidade própria”, foi o que ela ouviu às vésperas de estrear como atriz. A sugestão veio de um amigo, o jornalista e produtor Ezequiel Neves.
Getúlio e Tancredo
Mamélia nasceu em São João del-Rei, mas foi criada no Rio de Janeiro. Seu pai, Mozart Dornelles, era militar, como boa parte da família. Gaúchos, os Dornelles vieram de São Borja, a cidade de Getúlio Vargas, de quem o general Mozart era primo. Já do lado mineiro, era sobrinha de Tancredo Neves, de quem foi muito próxima.
No Rio de Janeiro, tendo o pai como maior incentivador e companheiro, Mamélia conheceu o teatro. Já gostava dos palcos, até que aos 15 anos, em um baile de carnaval são-joanense, conheceu Jota Dângelo. Os dois se casaram em 1957.
A lua de mel foi curta, uma semana só em São Paulo. Já formado em medicina e começando a dar aulas na UFMG, Dângelo estrearia um espetáculo em Belo Horizonte.
Mãe e sogra de Dângelo saíram horrorizadas daquela peça. “As duas falavam: ‘Achamos que era coisa de estudante (Dângelo foi um dos fundadores do “Show Medicina”), mas ele é médico formado, você tem que dar um jeito (de tirá-lo do teatro)’. Eu fiquei fascinada”, contou Mamélia ao programa da TV Assembleia.
Paralelamente à carreira de médico, Dângelo abraçou as artes cênicas. Vivendo em BH, Mamélia devorou a biblioteca do marido e se aproximou da chamada Geração Complemento, grupo de intelectuais capitaneado por Silviano Santiago, Heitor Martins e Ezequiel Neves, que criou a revista de mesmo nome.
Havia colaboradores por toda parte: Frederico Morais e Wilma Martins nas artes plásticas; Carlos Kroeber e João Marschner, no teatro; Klaus e Angel Vianna na dança. Todos se destacariam posteriormente na cena cultural do país.
Desta geração, “uma vanguarda dentro do Brasil”, comentou ela, resultou, entre várias iniciativas, o Teatro Experimental (TE), fundado em 1959 por Dângelo, Mamélia, Marschner e Kroeber.
Maria Clara, Beckett e Ionesco
Como atriz, ela fez todos os espetáculos de Maria Clara Machado. Atuação e figurino vieram no mesmo tempo. A renda das peças infantis permitiu que o grupo encenasse peças de Samuel Beckett, Eugène Ionesco e Fernando Arrabal.
Um marco do TE não vem da vanguarda europeia, mas do próprio Dângelo. Em 1968, ao lado de Jonas Bloch, escreve e dirige “Oh! Oh! Oh! Minas Gerais”, com Mamélia no elenco. Foi um sucesso tremendo em BH, “a gente não imaginava”, contou ela.
Quando a peça chegou a Brasília, a censura agiu para valer. Juscelino Kubitschek, cassado pelos militares, havia enviado a carta apresentada no final do espetáculo, junto com a canção “Peixe vivo”. A peça saiu da capital federal proibida de ser encenada no país.
Casa Oswaldo França Júnior
O Teatro Experimental continuou ativo, apesar da ditadura, e mudou seu nome para O Grupo, em 1974. Dângelo e Mamélia se mantiveram na liderança da trupe. Conseguiram um local para a sede da companhia, nomeando-a Casa de Cultural Oswaldo França Júnior até 1998, quando encerrou suas atividades.
Entre 1983 e 1986, Mamélia dirigiu o Centro de Artesanato Mineiro, época em que percorreu, de caminhão e em estrada de terra, todo o Vale do Jequitinhonha. Em 1998, foi secretária-adjunta da Cultura de Minas Gerais.Em São João del-Rei, fundou a Casa de Cultura no Centro Cultural Feminino Virgílio Dângelo.
Mamélia Dornelles deixa, além do marido Jota Dângelo, os filhos Paulo Rodrigo e André Guilherme e cinco netos.