Quando o pai da escritora gaúcha Manoela Sawitzki morreu – em 2011, em decorrência de câncer, aos 74 anos – ela se viu imersa numa incômoda contradição. Como era possível sofrer pela perda de alguém que, durante boa parte de sua vida, ela considerou como um inimigo e desejou que desaparecesse?

“Filha”, recém-lançado pela Companhia das Letras, é a resposta de Manoela (ou Manu, como a protagonista é chamada) a essa pergunta. Trata-se de um acerto de contas da autora com um pai que a oprimiu na infância, a espancou na adolescência e passou a tratá-la como “a florzinha do meu jardim” na idade adulta. Mas não “só”. 

Manoela Sawitzki investiga em concisas 120 páginas como um indivíduo elabora experiências violentas e, a reboque, expõe a particularidade das agressões dirigidas a mulheres e praticadas entre mulheres.

Compreender que, além de vítima do mesmo homem, sua mãe foi também cúmplice do comportamento abusivo dele com a filha é um dos passos que Manu dá em seu percurso de conquista da autonomia em relação à dinâmica familiar. 

“Entre os catorze e os quinze anos, experimento pela primeira vez: [...] 5. Ver a porta do banheiro ser arrombada para que eu continue sendo espancada pelo pai.”

Como demonstra o trecho acima, a escritora opta por uma escrita precisa, sóbria e inteiramente desprovida de autopiedade, ao narrar episódios de intenso sofrimento. Na entrevista a seguir ao Estado de Minas, Manoela Sawitzki fala sobre a decisão de escrever “Filha” e os conflitos que isso envolveu.

A morte do seu pai foi em 2011. Quando você teve a ideia de escrever esse livro e quanto tempo levou para colocar a ideia em prática?
Esse projeto começou em 2012. Eu estava fazendo mestrado em literatura no Rio e fui provocada pela minha orientadora a escrever um romance com meu projeto de pesquisa. Ela considerou que era melhor eu escrever um livro do que um projeto acadêmico convencional.

Eu estava vivendo o luto do meu pai e sentia que tinha que revisitar essa história, até para processar melhor o que tinha acontecido. Uma versão reduzida e experimental foi escrita nessa dissertação de mestrado que defendi em 2013. O que se tornou o “Filha” foi um dia a primeira parte desse livro.

A segunda parte foi o que veio a ser o “Vinco”, meu livro anterior. A questão do luto me interessava muito naquele momento. O luto pelo meu pai abarcou toda a complexidade que foi a minha relação com ele. Eu estava sofrendo pela perda dele e, ao mesmo tempo, eu tinha passado parte da minha vida desejando o desaparecimento dele. 

Essa contradição foi muito difícil de processar. Pela dificuldade de processar é que veio a urgência de escrever sobre isso.

Quando pensou na estrutura que o livro teria e considerando que se trata de uma história autobiográfica, o que guiou suas decisões?
Foi o momento em que entendi – que é uma declaração que abre o livro –, ali por volta dos 7 anos de idade, que eu queria de fato sair de casa. Eu já tinha a compreensão do quão disfuncional era a minha realidade familiar e ir embora envolvia essa espera de 10 anos. Isso é uma característica forte do interior do Rio Grande do Sul – os jovens migram para cidades maiores para fazer faculdade. Esse era um percurso natural.

Quando me dei conta de que houve esse intervalo de 10 anos, achei que fazia sentido contar o que tinha acontecido nesse intervalo, que foi uma permanente negociação com uma realidade familiar difícil e violenta e uma fabricação constante de estratégias de sobrevivência que têm a ver com a própria passagem para a vida adulta. Entendi que precisava falar da minha infância e adolescência para falar do meu pai.


Você também deixa claro que o livro consiste em sua versão da história. Isso reflete sua concordância com a afirmação de Riobaldo segundo a qual é “dificultoso” falar sobre o passado porque, com a passagem do tempo, as coisas “fazem balancê”?
Tem essa frase muito conhecida do Waly Salomão – “A memória é uma ilha de edição”. Essa ideia é chave para qualquer um que tenta rememorar sua história. Sempre tive muita consciência de que a minha memória é só minha. É um traço subjetivo. A realidade é contaminada por essa subjetividade.

Esse livro, antes de ser publicado, foi lido por uma das minhas irmãs e foi muito chocante para ela porque a versão que ela construiu sobre o nosso pai é diferente da minha. Ela ficou chocada com a leitura, mas depois, aos poucos, entendeu que era a minha experiência e meu ponto de vista, e ficou tudo bem entre nós. 

O próprio livro traz a narrativa do meu pai sobre a nossa história, o que ele considerava a verdade. O simples fato de eu entender muito cedo que a verdade dele não correspondia à minha deixou claro que essas versões são inerentes.

No livro, os personagens em torno de Manu e a cidade natal são identificados apenas pelas iniciais. Imagino que seja um recurso para atenuar o nível de exposição dos envolvidos. Você contemplou a ideia de que seus irmãos desaprovassem a exposição em livro da dinâmica familiar violenta? Isso chegou a configurar um conflito ético para você?
Foi um enorme conflito. Foi muito difícil para mim abrir mão das máscaras que a ficção nos dá. É muito mais fácil e divertido você lançar mão dessas máscaras. Queria falar sobre o meu pai, mas sobre a minha relação com ele. Eu não me sentia no direito de invadir as histórias individuais dos meus irmãos com o nosso pai, e eu tenho seis irmãos.

Foi de fato um conflito ético. A única pessoa nomeada no livro sou eu mesma. Essa foi uma decisão estratégica. O livro fala de mim com o meu pai. Essa é a história que estou disposta a contar. Mesmo com o artifício das iniciais, foi difícil. Foi difícil falar sobre esse pai terrível, foi difícil falar sobre a cumplicidade da minha mãe e sobre a vitimização dela. O fato de que ela foi vítima de violência doméstica não é uma história fácil de contar.

O tempo todo me perguntei por que valia a pena seguir assim. Para além do meu exercício pessoal de encarar uma história que vivi, acho que tem questões-chave – a violência doméstica é uma delas. Também me interessava falar sobre o fato de que pertenço a uma geração de mulheres que foram criadas envolvidas pelo machismo de forma muito brutal. E me interessava falar sobre o machismo manifestado entre mulheres. 

A questão-chave do livro é que é possível amar um homem que foi violento. Até que ponto essa sentença de ódio tem que ser perpétua? Foi chocante o momento da minha vida em que entendi que eu amava o meu pai, porque eu considerava o que ele tinha feito imperdoável.

Por que você opta por uma linguagem que desdramatiza episódios de violência e crueldade?
Acho que é um traço familiar. Existe uma tendência familiar a lembrar de certas histórias terríveis de um jeito risível. E, claro, eu também tinha o desejo de não escrever um livro muito derramado. O fato de o livro ser curto tem a ver com isso. Eu queria ser muito precisa na escolha das histórias que iria contar. Eu não queria esmiuçar.

E uma certa chave de humor revela um pouco do patético de certas coisas, de certas situações que podiam ser vividas como dramáticas no momento em que aconteceram, mas, vistas em retrospecto, minha compreensão é outra. Tendo a olhar para o que aconteceu com uma camada de humor.

Qual foi para a passagem do livro mais dolorosa de escrever?
É bem óbvia. A passagem da surra. Foi um trecho que custei muito a encarar. Tive uma rejeição muito grande a ele. Ele inclusive é bem sintético. Tentei ser bastante concisa nessa narração. Foi muito difícil porque foi muito brutal.

A foto da porta arrombada que encontrei entre fotos da família eu não sabia que existia. Foi a cena mais difícil. Sou a mais nova de uma família muito grande e com uma diferença de idade muito grande em relação aos mais velhos. Sou a temporã mesmo e as surras… deixa ver como vou elaborar. Acho que não apanhei como meus irmãos apanharam. O grau e a sofisticação das surras dos meus irmãos foram muito maiores do que vivi.

E essa surra foi muito violenta mesmo. Naquele momento, considerei dar queixa na polícia. Fiquei muito machucada. Foi difícil reviver. 

Você cita Albert Camus uma vez no livro. Há uma anedota segundo a qual Camus dizia que Sartre “jamais superou o fato de ter tido uma infância feliz”. Você considera possível superar uma infância infeliz?
[Longo silêncio.] Acho que é possível. A gente é o resultado da nossa história e entendo que tenho uma história de sobrevivência. Existia uma violência concreta física e uma violência psicológica terrível. Foi uma infância de medo. A violência e o medo deixam uma marca muito profunda. O medo atua ao longo da vida, se você não prestar atenção.

Ter sobrevivido a isso sem usar as mesmas estratégias do opressor me faz acreditar que é possível sobreviver e é possível, em alguma instância, a cura.

O surgimento de suas fobias na adolescência é mencionado no livro. Conseguiu controlá-las?
A fobia de aranha continua. Ela é muito séria mesmo [risos]. Cresci uma pessoa um pouco medrosa, mas ao mesmo tempo, fui resiliente. As duas coisas convivem numa espécie de gangorra, tem uma brincadeira, um jogo que acontece entre essas duas forças.

Mas acho que para se recuperar de uma infância infeliz existe um trabalho de compreensão a ser feito. Não acredito simplesmente na decisão de perdoar meramente, mas sim num esforço de compreensão das coisas, da complexidade das pessoas.

No comentário de José Américo Motta Pessanha a Clarice Lispector sobre os originais de “Água viva”, ele questiona como ela pretendia seguir com a produção literária depois de ter-se feito objeto de sua literatura. No seu caso, qual é a resposta para essa pergunta?
Ainda não tenho essa resposta. Tenho um projeto de um livro autoficcional, mas que é mais ficcional do que auto. Parte de uma experiência que vivi por quatro anos, morando nos EUA, em torno da Blue Ivy League, na Universidade de Harvard. Fiquei muito interessada por esse universo. A personagem remete a mim, mas não sou eu. 

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Tenho vontade de falar sobre o período que pulo no “Filha”, quando me mudo para Porto Alegre, da vida de estudante dura, no sentido de sem dinheiro. Tenho vontade, mas não tenho certeza ainda. Esse passo que dei ainda me assusta. Estou longe de estar completamente à vontade com ele, mas ele não altera em nada o meu desejo de continuar escrevendo ficção.

Capa de

Reprodução

“FILHA”
. Manoela Sawitzki
. Companhia das Letras (120 págs.)
. R$ 69,90

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