Histórias de homens que deixam seus países para se juntar ao Estado Islâmico já são conhecidas. Menos visível, porém, é o destino das mulheres que atravessam fronteiras para se tornarem esposas de jihadistas, submetidas a um regime de opressão, violência e submissão.


É justamente nesse universo que se insere “Rabia - as esposas do Estado Islâmico”, primeiro longa-metragem da diretora alemã Mareike Engelhardt. O filme acompanha a trajetória de jovens levadas para as chamadas “madafas”, ou casas de noivas, espaços onde mulheres aguardam para se casar com combatentes, mas que, na prática, as transformam em peças de um sistema que reduz seus corpos a máquinas de reprodução.


Engelhardt conta que a ideia surgiu depois de ver uma reportagem sobre um casal radicalizado. Os dois queriam explodir a Torre Eiffel e depois se casar. “Eles falharam. Mas achei extremamente interessante como o ISIS usou sentimentos universalmente bons, como amor, família e casamento, para instrumentalizá-los e fazer com que esses jovens praticassem coisas tão horríveis”, conta.

Estatísticas do Estado Islâmico


Segundo estimativas da ONU, desde 2013 mais de 42 mil pessoas se juntaram ao Estado Islâmico na região entre Iraque e Síria. De casamentos forçados, nasceram quase 25 mil crianças. O resultado, como mostra o filme, é uma nova geração de jihadistas formada sob esse regime.


“É algo que me preocupa profundamente, porque podemos ver nos últimos anos como todas as vantagens democráticas pelas quais lutamos por gerações podem ser perdidas tão facilmente, e como as pessoas caem nessas armadilhas de grupos extremistas que as convencem”, afirma a diretora.


A relação do tema com a história alemã também serviu de impulso para a diretora. Ela diz ver paralelos entre o projeto do califado e práticas do regime nazista, que também mantinha casas onde mulheres eram trancadas para engravidar de soldados e gerar arianos “racialmente puros”.


“Achei interessante que esses regimes, que não tinham nada em comum e aconteciam em épocas distintas, se baseavam em um pensamento binário muito parecido. É outra religião, outro país, mas as ideias básicas por trás disso são semelhantes”, afirma.

Fuga para a Síria


No longa, Jessica (Megan Northam) é uma faxineira de hospital cansada da vida sem reconhecimento e que encontra nas promessas do Estado Islâmico uma perspectiva de saída. A personagem embarca com a amiga Laila (Natacha Krief) rumo à Síria.


Chegando lá, as duas passam por uma série de rituais. Têm celulares e joias recolhidos e são iniciadas em uma rotina de submissão. No primeiro encontro de Jessica com um pretendente, ele indaga: “Você sabe cozinhar?”.


Para construir a narrativa, Engelhardt entrevistou mulheres que viveram essa experiência. Todo o roteiro é baseado nos relatos ouvidos por ela. Uma dessas mulheres atuou como consultora no set.


Muitas jovens sabiam para onde estavam indo e apoiavam a ideologia, outras só descobrem do que realmente se trata ao chegar lá. “Era importante que o espectador percebesse que não se trata de um fenômeno muçulmano ou islâmico, ou de uma religião específica, mas de algo universal, que nos preocupa a todos e em que qualquer um pode cair”, afirma a diretora.


Com a diretora de fotografia Agnès Godard (sobrinha do cineasta Jean-Luc Godard), Engelhardt buscou criar um espaço psicológico capaz de transmitir a sensação e o estado de espírito das mulheres presas naquelas casas.

Uso das cores no filme


“Queria que o espaço nos contasse sobre a ideologia. Basicamente, é como uma fábrica onde os corpos são reduzidos a objetos usados pelo sistema para produzir mais pessoas. Encontrei uma antiga fábrica de tabaco no Sul da França que transformamos em set”, diz. As gravações externas ocorreram na Jordânia.


Aos poucos, o ambiente vai escurecendo, até que, no final, quase todas as cores desaparecem. “Assim como elas perdem sua ingenuidade e juventude”, afirma Engelhardt. “Entramos em tons associados a pinturas do inferno: terra queimada, carvão, marrom, preto, vermelho escuro. Todas cores da destruição”, cita.


Nesse processo, a protagonista também se transforma aos olhos do espectador. No início, ela inspira identificação no espectador com a história de uma mulher aparentemente comum. Com o avançar da trama, passa a ser incômodo acompanhar sua trajetória. “Gosto muito desse relacionamento com um personagem no cinema que não é fácil para o espectador”, diz a diretora.


Já lançado na França e na Bélgica, o filme estreia nesta quinta-feira (21/8) no Brasil. Nos Estados Unidos, ainda não há distribuição confirmada. Engelhardt reconhece que o tema pode gerar resistência. “É um assunto politicamente complicado, especialmente em um momento em que o fascismo volta a ganhar espaço e o pensamento extremista se normaliza. Talvez nem todo mundo queira ser confrontado por um filme assim”, afirma.



“RABIA - AS ESPOSAS DO ESTADO ISLÂMICO”
(França, 2025, 94 min.) Direção: Mareike Engelhardt. Com Megan Northam, Lubna Azabal e Natacha Krief. Estreia nesta quinta-feira (21/8) no UNA Cine Belas Artes (Sala 1, 14h40, 20h30).

Quais são as outras estreias em BH?

Além de “Rabia”, outros nove longas estreiam no circuito de Belo Horizonte nesta quinta-feira (21/8). Entre os brasileiros, estão “Moacyr Luz, o embaixador dessa cidade”, “Uma mulher sem filtro”, “Luiz Gonzaga – légua tirana” e “Placar: a revista militante”.

“O último azul” tem pré-estreia marcada para os dias 23/8 e 24/8, às 20h30, no UNA Cine Belas Artes, e no dia 23, às 18h, no Centro Cultural Unimed-BH Minas. Na programação internacional, chegam aos cinemas os norte-americanos “Amores à parte” e “Anônimo 2”, o francês “O último moicano” e o australiano “Faça ela voltar”.

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