Ao longo de 2017, os atores-pesquisadores Jesser de Souza, Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini – todos integrantes do grupo Lume Teatro – frequentaram com regularidade a ala psiquiátrica do Hospital das Clínicas de Campinas (SP), acompanhando consultas de pessoas com Alzheimer e de seus familiares.
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Não era a primeira vez que o grupo se debruçava sobre memórias. Já haviam coletado causos de cidades interioranas para o roteiro de “Café com queijo” (1999), assim como mergulhado em lendas e mitologias da tradição oral amazônica em “Hhi-zen, 7 cuias” (2004) e pesquisado a resistência dos chapeleiros em “O que seria de nós sem as coisas que não existem” (2006). O passo seguinte seria criar um espetáculo sobre lembrança e esquecimento – daí as visitas ao Hospital das Clínicas.
O projeto, no entanto, ganhou novas dimensões. “Kintsugi, 100 memórias”, que estreia nesta sexta-feira (22/8) no Teatro II do CCBB-BH, extrapola as implicações óbvias da degeneração cognitiva e alcança contornos políticos, ao tratar de apagamentos históricos, entre eles, as barbaridades da ditadura militar (1964-1985).
Formas de esquecimento
“No início, partimos para o mais previsível: as demências que implicam na perda progressiva da memória”, conta Jesser. “Foi o Emilio García Wehbi (diretor do grupo argentino El Periférico de Objetos) quem nos alertou para outras formas de esquecimento, como a história dos indígenas, dos africanos escravizados e da própria ditadura”, diz.
Desde a morte do fundador e diretor Luís Otávio Burnier, em 1995, o Lume adota a prática de convidar um encenador diferente a cada montagem. Desta vez, o convite foi feito a Emilio García Wehbi. “Quando mostramos nossa pesquisa, ele disse: ‘Falar da doença, em si, me parece chover no molhado. Deveríamos ampliar o campo para memórias apagadas pelo trauma, que o cérebro recusa como mecanismo de defesa, e para aquelas que escolhemos esquecer para poder seguir em frente. Isso tem muito mais impacto no espectador’”, recorda Jesser.
A partir daí, os atores selecionaram 100 memórias individuais e coletivas, amarradas pelo dramaturgo carioca Pedro Kosovski. Elas emergem em cena como fragmentos soltos, sem ordem cronológica.
Origem do nome do espetáculo
Sem “início, meio e fim” bem definidos, essas lembranças foram reunidas sob o nome “Kintsugi”. O termo designa a técnica japonesa de reparação de cerâmicas que valoriza as fissuras, em vez de escondê-las. Reza a lenda que um general do século 15, insatisfeito com consertos feitos com grampos de metal, buscou alternativas mais agradáveis esteticamente.
A solução encontrada por um artesão foi misturar o ouro com a cola para reparar as peças quebradas, destacando as rachaduras em vez de escondê-las. O termo Kintsugi ganhou, então, sentido filosófico com o passar dos anos.
A fissura que “Kintsugi, 100 memórias” pretende ressaltar é a quebra da ordem democrática no Brasil, em 1964. A escolha desse marco ocorreu em razão do contexto político vivido pelo país quando a peça começou a ser desenvolvida.
Ameaça de ruptura institucional
“Vivíamos a iminência de uma ruptura institucional. Dilma (Rousseff) havia acabado de sofrer o golpe, conduzido por um grupo de homens brancos que exaltavam torturadores. Ao mesmo tempo, a polarização que hoje vemos mais acirrada já se desenhava. Estávamos muito apreensivos, pensando em reconstrução”, comenta Jesser. “Se você nega um trauma, em algum momento ele retorna. Mas, se acolhe a ruptura, aceita-a e a transforma, isso também te transforma”, afirma.
Ainda que a maioria das “100 lembranças” gire em torno da ditadura, Jesser ressalta que o espetáculo não deve ser visto somente como político. “Toda ação artística é, de alguma forma, política. Mas acredito que o teatro é, antes de tudo, um encontro entre seres humanos. A dramaturgia, a cenografia, a luz, a música, o figurino e a maquiagem são estratégias para que o espectador se desligue da realidade imediata e, por algumas horas, entre em outra dimensão.”
Ele diz acreditar que “nenhum espetáculo fala de outra coisa senão da nossa humanidade. Da forma como existimos, como nos relacionamos com o mundo, com os outros e, inevitavelmente, com a política”.
“KINTSUGI, 100 MEMÓRIAS”
Dramaturgia: Pedro Kosovski. Direção: Emilio García Wehbi. Com a companhia Lume Teatro. A partir desta sexta-feira (22/8) até 15 de setembro, de sexta a segunda, às 19h, no Teatro 2 do CCBB BH (Praça da Liberdade, 450, Funcionários). Ingressos à venda por R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia), na bilheteria e pelo site do centro cultural.