"Dois papas" leva ao palco embates entre Bento 16 e Francisco
Peça que virou filme de sucesso da Netflix encerra curta temporada hoje (9/11) em BH. Celso Frateschi e Zécarlos Machado protagonizam espetáculo
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De um lado, Joseph Ratzinger, já como papa Bento 16, é consumido pela angústia. Passa boa parte dos dias na Sala das Lágrimas, no Vaticano, revisitando princípios e propósitos de seu pontificado. No íntimo, amadurece uma decisão impensável: deixar o trono de São Pedro.
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A ideia, contudo, beira o absurdo. A última abdicação papal havia ocorrido em 1415, quando Gregório 12 renunciou ao cargo para pôr fim ao Grande Cisma do Ocidente, num contexto muito diferente. Seis séculos depois, um gesto semelhante poderia ser interpretado como capricho do pontífice ou, pior, sinal de fraqueza do sumo sacerdote.
Do outro lado, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio – o futuro papa Francisco – também se mostra exausto. Recolhe-se em reflexões sobre a própria trajetória e lamenta decisões passadas. Assume ser pecador e, ao fim de uma missa, confidencia a uma amiga o desejo de se aposentar.
Para aproximar esses dois homens atormentados, o dramaturgo neozelandês Anthony McCarten imaginou um encontro entre eles na peça “Dois papas” (2017), adaptada com sucesso para o cinema pela Netflix em 2019, sob direção de Fernando Meirelles (“Cidade de Deus” e “Ensaio sobre a cegueira”).
Sucesso também nos palcos britânicos, a peça só ganhou uma montagem brasileira em março deste ano, dirigida por Munir Kanaan. O espetáculo, que já passou por cidades de São Paulo e por Porto Alegre, encerra a curta temporada em Belo Horizonte neste domingo (9/11), às 19h, no Cine Theatro Brasil. No palco, Zécarlos Machado e Celso Frateschi interpretam, respectivamente, Bento 16 e Jorge Mario Bergoglio.
Visões de mundo
Com personalidades conflitantes, Bento 16 e Bergoglio discutem suas visões de mundo sem cair em um debate beligerante. O que se sobressai é a raiz humana de duas pessoas situadas em espectros ideológicos distintos.
Não se trata de um confronto entre “bem” e “mal”, e sim da possibilidade de diálogo em contraponto à ideia de “verdade absoluta”. Bento 16 e Bergoglio são duas almas sinceras que acreditam servir a Deus, mas de maneiras diferentes. Bento encarna a razão dogmática. É o teólogo rígido, guardião da tradição. Sua fala é mais formal, com pausas longas, frases encadeadas e raciocínio lógico. Reconhece e lamenta profundamente os escândalos na Igreja.
“Ele era um acadêmico, um intelectual com mais de 60 livros publicados. Falava oito idiomas – entre eles, latim, grego, hebraico – e é considerado até hoje um teólogo de primeira mão dentro do Vaticano”, afirma Zécarlos. “Apesar de todo o conservadorismo e da ocultação de provas de casos significativos na Igreja, Ratzinger (Bento 16) representa determinados grupos conservadores e tem a simpatia de pessoas que não fazem parte desse grupo, como o Leonardo Boff, que o admira muito pela posição de defensor eminentemente da estrutura da Igreja”, acrescenta.
Zécarlos lembra que Bento 16 ainda hoje é acusado de ter pertencido à juventude hitlerista. “No entanto, as pessoas se esquecem de que o pai dele era contra o movimento nazista. Nos anos 1940, um jovem era obrigado a se juntar à juventude hitlerista. Há uma história que diz que, se Ratzinger se deixasse ferir, poderia desertar. Então, dá para ter empatia. Ele foi conservador, encobriu determinadas coisas por crença ou por pressão de grupos lá dentro”, diz o ator, ponderando que os abusos sexuais são gravíssimos e que o pontífice deveria ter se atentado mais à questão.
Olhar feminino
Bergoglio, por sua vez, representa a razão pastoral. Fala com humor, permite-se usar gírias e se aproxima do povo. Suas respostas são menos teológicas e mais humanas, quase confessionais. Em momento de sinceridade íntima com Bento 16, revela carregar a culpa por não ter agido de forma mais incisiva na proteção de dois padres jesuítas perseguidos pela ditadura argentina, quando ele chefiava a congregação no país.
Ainda que a trama se concentre nas figuras dos dois religiosos, “Dois papas” conta com coadjuvantes que ampliam o debate. Carol Godoy e Eliana Guttman, intérpretes das personagens Irmã Sofia e Irmã Brigitta, respectivamente, levam ao palco a visão feminina sobre o mundo masculino – e por vezes machista – do Vaticano. Por meio delas, Bento 16 e Bergoglio voltam o olhar para o cotidiano.
“Esse olhar feminino humaniza mais as pessoas, ajudando a estabelecer essa empatia com mais vigor”, destaca Zécarlos. “O filme do Meirelles, que é maravilhoso, trata mais da questão ideológica dos personagens. Já a peça traz uma questão intrínseca do ser humano, que é o afeto primordial. Isso parece estar perdido num canto dentro da gente”, detalha.
Tragédia familiar
Celso Frateschi manteve a agenda na capital mineira mesmo após a tragédia familiar que o atingiu na última quinta-feira (6/11), quando seu sobrinho teve um surto psicótico e matou o próprio pai – o ex-deputado Paulo Frateschi, irmão do ator – a facadas.
“DOIS PAPAS”
Texto: Anthony McCarten. Tradução: Rui Xavier. Direção: Munir Kanaan. Com Zécarlos Machado e Celso Frateschi. Neste domingo (9/11), às 19h, no Cine Theatro Brasil (Av. Amazonas, 315, Centro). Ingressos à venda por R$ 80 (plateias 1 e 2A/inteira) e R$ 50 (plateia 2B inteira), na bilheteria ou pelo site do Eventim. Meia-entrada na forma da lei. Informações: (31) 3201-5211.