‘Lumière: A aventura continua’ é filme que parece aula de cinema
Assinado por Thierry Frémaux, diretor do Festival de Cannes, documentário tem registros raros do início da sétima arte, quando o potencial estético já era claro
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É um filme? Ou uma aula? “Lumière: A aventura continua”, de Thierry Frémaux, é um filme e uma aula. Se preferível, chamemos de aula em forma de filme.
Continuação de “Lumière: A aventura começa” (2016), esta segunda empreitada apresenta 120 curtas, chamados “vistas”, realizados entre 1895 e 1905 e recentemente restaurados. Belíssimas peças musicais de Gabriel Fauré acompanham os filmes, além dos comentários de Frémaux.
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Muitas dessas tomadas são pouco conhecidas. Algumas podem ser vistas pela primeira vez com essa qualidade de imagem. Outras são emblemáticas do chamado “primeiro cinema” e serão provavelmente reconhecidas durante a projeção.
Dos irmãos Auguste e Louis Lumière, Louis foi o que mais se arriscava na direção, pavimentando, com um grupo de operadores de sua confiança, boa parte dos caminhos que o cinema iria percorrer nos anos seguintes.
Movimentos de câmera
As vistas, nesse sentido, têm opções formais que seriam perseguidas desde sempre: profundidade de campo, composição em grande escala, angulações diferentes para grandes ou pequenos grupos de pessoas, uma certa continuidade da pintura, arte visual que dominou o século 19.
Até mesmo os movimentos de câmera, que passaram a dominar o cinema na segunda metade do século 20, são experimentados ao colocar o aparelho em cima de veículos como trens ou barcos.
Ver essas imagens do nascedouro do cinema não só emociona pela importância histórica, mas pela beleza das composições. Como Frémaux fala, a certa altura: “Os enquadramentos de Lumière são magníficos, e seus filmes anunciam que o cinema é uma promessa estética”.
O cineasta é associado a outros gênios da história do cinema. Além de Griffith, Frémaux cita Abel Gance, Sergei Eisenstein, John Ford, Fritz Lang, Murnau, Abbas Kiarostami, Yasujiro Ozu, entre outros. Já está tudo ali, de forma embrionária, sem cores e sem truques, nos pequenos filmes de Lumière: o milagre do cinema.
Seria importante que os cineastas de hoje vissem e estudassem estes filmes. A maioria deles não dá muito valor à composição, que, como destaca Frémaux, é uma qualidade muito importante do cinema desde o século 19.
Despoluir o olhar
Voltar a Lumière serve também para despoluir nosso olhar das imagens do que se convencionou chamar de audiovisual, que cabe tanto ao cinema quanto a uma bobagem descartável do TikTok.
É simplória a associação de Lumière ao documentário, enquanto Georges Méliès teria lançado as bases para a ficção cinematográfica. Ambos são pioneiros nos dois registros, mas Lumière preferia o realismo enquanto Méliès gostava de truques.
Grosso modo, Lumière é um cineasta do plano, ou seja, da continuidade da ação, do que acontece entre dois cortes, mesmo que a maior parte de seus filmes não tenha cortes, ou seja, têm um único plano. Méliès é um cineasta da montagem, do corte. Para ele, um prestidigitador, o cinema abria novas possibilidades de brincar com a ilusão.
Ultrapassada essa questão, podemos nos deslumbrar com as imagens que Lumière criou enquanto observava a vida nas grandes cidades do mundo, as pequenas cenas familiares ou dançarinos e esportistas em suas atividades.
Não há como ficar insensível a esses filmes, nos quais a qualidade da manifestação artística é perceptível. Voltando a eles hoje, a excelência das vistas se sobressai.
Frémaux, controverso diretor do Festival de Cannes desde 2007, procura acompanhar essas imagens com uma boa dose de análise e contextualização histórica, criando uma estrutura instigante, que abre espaço para o pensamento cinematográfico.
É nesse sentido que este filme, como o primeiro, se assemelha a uma aula. E essa aula só poderia ser ministrada por esse diretor, com o arranjo escolhido por ele das imagens de outro. (Sérgio Alpendre)
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“LUMIÈRE: A AVENTURA CONTINUA!”
(França, 2025, 103 min.) Direção: Thierry Frémaux. Documentário. Classificação: 10 anos. Em cartaz no UNA Cine Belas Artes (Sala 3, 14h).