“Uma história da arte brasileira”, exposição encerrada ontem no CCBB BH, apresentou parte do acervo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM RJ). Trata-se de acervo ligado à família Chateaubriand, que participou ativamente da construção dos museus de arte moderna no Brasil. É, portanto, um legado importante sobre o papel dos agentes da comunicação e da imprensa brasileira: os Diários Associados junto a colecionadores trabalharam na promoção da memória pública das artes no país.
O MAM, assim como outros museus modernos brasileiros, tem forte referência no trabalho de difusão da arte moderna desenvolvido pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, nos Estados Unidos.
Aqui, citamos as pesquisas de Maria Cecília França Lourenço e Jesús Pedro Lorente: a primeira estudou os museus modernos brasileiros, o segundo a história do MoMA. Ambos orientam nosso olhar para a exposição com curadoria de Raquel Barreto e Pablo Lafuente, curadora-chefe e diretor artístico do MAM carioca, com cinco núcleos narrativos: “Modernismo” (1910-1950); “Abstracionismo e Concretismo” (1950); “Nova figuração e poéticas do concreto” (1960-1970); “Anos 1980-1990”; “Anos 2000 em diante”.
Os núcleos narrativos se fundamentaram em uma proposta linear e estilística da arte, segundo France Lévesque, seguindo a prática de um modelo sistêmico de organização das coleções, como no caso do MoMA.
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No primeiro núcleo narrativo, observamos a preocupação da curadoria em garantir uma perspectiva diversa quanto às geografias, assegurando a presença de artistas de diferentes regiões do Brasil. Houve também cuidado com as representatividades étnico-raciais, realizando-se uma reclassificação que inclui artistas antes nomeados como “ingênuos” e/ou “primitivos” entre artistas modernistas já consagrados.
Desafio
À medida que a exposição avançava, identificamos a dificuldade dos curadores em manter o perfil do primeiro núcleo narrativo e em nomear as artes da década de 1980 em diante. Isso corresponde à análise de Lévesque, apontando que os artistas passaram a produzir arte que já não poderia ser encaixada nesse modelo sistêmico, obrigando museus estruturados por esse perfil a repensar categorias clássicas de colecionamento.
Assim, a exposição colocou em pauta a dificuldade de nomeações que esse tipo de abordagem produz tanto para a curadoria de exposições quanto para a organização de coleções.
O mais interessante é que “Uma história da arte brasileira” ficou por algumas semanas em cartaz simultaneamente à exposição “Fullgás”, com curadoria-geral de Raphael Fonseca, curadoria adjunta de Amanda Tavares e Tálisson Melo, além da assistência de curadoria de Amanda Sammour, Juliana Reolon e Kamyla Belli, com participação da estagiária de curadoria Gabriela Reolon.
“Fullgás” trouxe a BH cerca de 300 obras de 200 artistas de todos os estados brasileiros
“Fullgás” construiu o diálogo entre história da arte e antropologia, apresentando-se por outra abordagem e nos convidando a pensar uma década de 1980 expandida, a partir da pergunta-problema que nasce da canção que dá nome à exposição: “Você me abre seus braços/ e a gente faz um país?”, de Antonio Cícero e Marina Lima. Aqui tivemos proposta de nomeação que abriu a reflexão a partir da cultura para compreendermos a vivência e a criação artística daquele período.
Trazendo a música e a poesia como teoria que fundamenta o argumento curatorial, todos os títulos dos núcleos eram nomes de canções: “Que país é este?”, “Beat acelerado”, “Diversões eletrônicas”, “Pássaros na garganta” e “O tempo não para”.
Aquela exposição reuniu mais de 300 obras de 200 artistas representando todos os estados brasileiros, entrelaçando questões que são pauta dos movimentos sociais, mas já estavam presentes no pensamento e na pesquisa artística de um país que precisava reinventar a democracia: as queimadas nas florestas; os desafios da vida urbana; as lutas indígenas e quilombolas; as demarcações de terra; a igualdade social; a educação; o direito ao lazer, à fruição, à diversão e à festa; as vivências LGBTQIA+; o feminismo; a luta contra a desnutrição; a saúde e a convivência com o HIV, apesar das múltiplas violências sofridas.
“Fullgás” arrebatou qualquer modelo sistêmico, afirmando que não é possível pensar as histórias das artes sem as dimensões sociais e culturais próprias da vida de todos nós. Muitos artistas estão profundamente implicados com as questões dos movimentos sociais: são muitas as lutas do povo e para o povo. Assim, dos anos 1980 para cá, há muitos nomes possíveis para pensarmos os problemas das artes, dos artistas e dos povos.
* Carolina Ruoso é doutora em história da arte pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne e professora de teoria, crítica e história da arte na Escola de Belas Artes da UFMG
