Por José Eduardo de Lima Pereira

“Minha pátria é a língua portuguesa” — frase que antes cabia inteira numa conversa de esquina, hoje precisa de nota de rodapé, glossário e, se possível, um advogado linguístico. A pátria continua ali, mas a língua anda esburacada, cheia de pedágios semânticos. Cada palavra passa por revista. Cada expressão pede antecedentes. E basta um tropeço — sobretudo se for numa alpercata — para virar incidente diplomático.

Porque foi isso: uma alpercata. Um chinelo de borracha. Uma sandália de dedo, dessas que já conheceram mais calçadas do que muitos discursos. Nada além de um objeto humilde, criado para proteger o pé do chão quente. Mas nós, brasileiros criativos, resolvemos exigir mais dela. Muito mais. A pobre sandália saiu de casa achando que ia à praia e acabou convocada para um debate nacional sobre ideologia, valores, intenções ocultas e o verdadeiro sentido da palavra “passo”.

Abusamos da alpercata. É preciso dizer com todas as letras — simples, de borracha, antiderrapantes. Carregamos nela nossas neuroses, nossas suspeitas, nossas brigas de família ampliadas para a escala do país. Onde havia uma piada, enxergamos um complô. Onde havia metáfora, farejamos código secreto. O chinelo, que sempre viveu no território da informalidade, foi promovido à condição de documento político sem jamais ter prestado concurso.

E assim se manifesta a loss of shared language: um fala “sandália de dedo”, o outro escuta “manifesto”. Um diz “andar com os dois pés”, o outro acusa: “viés!”. A conversa não emperra por falta de argumentos, mas por excesso de interpretação. Somos um povo que já não pisa no chão — pisa no símbolo. E tropeça nele com solenidade.

Há algo de cômico, convenhamos. O Brasil, que já resolveu crises graves de chinelo na mão e bom humor na boca, agora entra em curto-circuito por causa do mesmo chinelo — só que levado a sério demais. Talvez seja esse o exagero mais triste: quando até a ironia precisa pedir licença e a alpercata, coitada, não pode mais ser apenas alpercata.

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Mas é Natal. Tempo de alguma indulgência. Talvez seja hora de aliviar o pé, tirar os sapatos pesados da desconfiança e lembrar que houve um país onde todos calçavam a mesma sandália sem perguntar de que lado ela vinha. Um Brasil em que a língua portuguesa ainda era pátria e o chinelo, apenas chinelo. Se exageramos no uso simbólico da alpercata, que ao menos tenhamos a elegância de pedir desculpas a ela — e devolver-lhe a dignidade modesta de levar a gente adiante, sem discurso, sem rótulo, sem briga.

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